O livro On China (2011), de Henry Kissinger, é uma das mais ambiciosas tentativas de um estadista ocidental em compreender e apresentar ao público internacional a lógica profunda da diplomacia e da estratégia chinesa. Escrito por um dos arquitetos da reaproximação sino-americana no século XX, a obra combina análise histórica, reflexão estratégica e memória pessoal, oferecendo uma perspectiva singular — embora não isenta — sobre as relações entre China e Estados Unidos.
Uma civilização com vocação imperial: o pano de fundo cultural
Kissinger inicia o livro destacando o que considera ser a base distintiva da política externa chinesa: sua autoconcepção como civilização contínua, mais do que como Estado-nação. Para ele, a China se vê como o Reino do Centro (Zhongguo), com uma história milenar marcada por ciclos de desordem e restauração da ordem sob uma autoridade central forte. A partir disso, o autor argumenta que a estabilidade e a unidade são princípios quase sagrados para o pensamento estratégico chinês.
Esse pano de fundo permite entender a relutância histórica da China diante de sistemas que ameaçam a ordem estabelecida, como o colonialismo ocidental e, mais recentemente, os movimentos pró-democracia e separatistas. A prioridade não é a expansão, mas a manutenção da ordem interna e do status civilizacional.
O trauma da humilhação e a cautela estratégica

A obra trata com destaque o chamado Século da Humilhação (1839–1949), em que a China foi submetida a invasões ocidentais, tratados desiguais e perda de soberania. Esse período histórico, segundo Kissinger, molda até hoje o comportamento cauteloso e defensivo da diplomacia chinesa.
Nesse contexto, o autor introduz o conceito da estratégia indireta chinesa, inspirada em jogos como o wei qi (conhecido como go), no qual o objetivo não é a destruição direta do adversário, mas o seu cerco progressivo. Essa forma de pensar contrasta com a tradição ocidental do xadrez, baseada em confronto direto e rápida resolução de conflitos.
Diplomacia do século XX: da guerra da Coreia à visita de Nixon
Kissinger dedica uma extensa parte do livro às relações sino-americanas na Guerra Fria, destacando eventos como a Guerra da Coreia e a questão de Taiwan como pontos centrais de atrito, mas também de abertura. É nesse contexto que ele relembra sua própria participação na famosa diplomacia do pingue-pongue, nas missões secretas a Pequim e na histórica visita de Richard Nixon à China em 1972.
A diplomacia triangular proposta por Kissinger — Estados Unidos, China e União Soviética — teve como objetivo recalibrar o equilíbrio global, usando o reestabelecimento de relações com Pequim como uma forma de conter a influência soviética. O livro apresenta essa manobra como um marco de realismo diplomático, no qual o pragmatismo se sobrepôs às ideologias.
A diplomacia chinesa segundo Kissinger: lições e princípios
Entre os principais aprendizados que Kissinger busca transmitir ao leitor está a complexidade e a consistência da diplomacia chinesa. Dentre os pontos destacados, estão:
- A busca pelo equilíbrio de poder, não como hegemonia, mas como forma de evitar o cerco e a instabilidade;
- O uso da paciência estratégica, atuando no longo prazo, muitas vezes tolerando perdas momentâneas em nome de ganhos futuros;
- A prioridade ao interesse nacional, entendido não apenas em termos materiais, mas como preservação da continuidade civilizatória;
- A prática do ataque punitivo, como forma de demonstrar limites e restaurar a dissuasão (casos com Índia, Vietnã e URSS são citados como exemplos).
Kissinger apresenta a China como uma potência que raramente busca confrontos diretos, mas que não hesita em agir com firmeza quando se sente encurralada, especialmente quando percebe ameaças à sua integridade territorial ou prestígio nacional.

Tiananmen e o dilema entre valores e interesses
Um dos momentos mais sensíveis da obra é a discussão sobre o Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989. Kissinger reconhece que o episódio foi um divisor de águas nas relações China-EUA, gerando forte pressão para que os EUA condenassem as ações chinesas. No entanto, ele também argumenta que, para os líderes chineses, os protestos foram vistos como uma ameaça direta à estabilidade nacional — mais uma ruptura na ordem do que um clamor legítimo por liberdade.
Ao tratar do episódio com distanciamento e sem julgamento explícito, Kissinger expõe um dos pontos mais criticados de sua abordagem: a omissão quanto às violações de direitos humanos, substituída por uma leitura essencialmente estratégica e sistêmica.
O ascenso pacífico e os dilemas da nova ordem
Kissinger dedica capítulos importantes à transição iniciada por Deng Xiaoping, cujas políticas de reforma e abertura, conhecidas como as Quatro Modernizações, pavimentaram o caminho para a ascensão econômica da China. A estratégia de Deng — “esconder capacidades e ganhar tempo” — foi, segundo Kissinger, uma adaptação sofisticada à ordem internacional dominada pelos Estados Unidos, evitando confrontos diretos enquanto se construía poder silenciosamente.
Para o autor, o ascenso pacífico da China não deveria ser visto como ameaça, mas como um fenômeno inevitável que deve ser acomodado com sabedoria pela ordem internacional. Ainda assim, ele reconhece que a ascensão chinesa impõe um desafio crescente aos EUA, não apenas em termos econômicos, mas também no plano simbólico: trata-se da emergência de um modelo alternativo de sucesso, sem os mesmos pilares ideológicos ocidentais.
É nesse ponto que o livro se aproxima de uma proposta quase normativa. Kissinger sugere que, diante de uma nova bipolaridade entre EUA e China, as duas potências devem encontrar formas de cooperação estratégica, evitando cair nas armadilhas da rivalidade hegemônica. Aqui ele recupera, de forma provocadora, o ideal kantiano da paz perpétua, como projeto que deve ser mantido não pela boa vontade dos Estados, mas pelo entendimento de que o custo do conflito seria catastrófico para ambos os lados.
O peso do autor: Kissinger como diplomata e historiador
O que torna On China particularmente relevante é a fusão entre análise estratégica, experiência diplomática e reconstrução histórica. Kissinger não apenas estudou a China: ele foi um ator central em sua reinserção no sistema internacional, o que dá à obra um valor de testemunho único. No entanto, essa mesma proximidade também impõe limites evidentes.
Sua leitura da história chinesa é moldada por um olhar pragmático, funcionalista, e muitas vezes complacente com o autoritarismo — em especial quando este se justifica como ferramenta para manter a ordem. Não se trata de uma análise neutra, mas de uma visão construída com objetivos diplomáticos, voltada para moldar a percepção internacional da China como potência responsável.
Em On China, a crítica às violações de direitos humanos, à censura ou ao nacionalismo agressivo é atenuada ou ausente. O foco está quase sempre nos grandes jogos estratégicos, nas negociações entre elites, nas relações entre Estados — e muito pouco no impacto dessas decisões sobre populações, indivíduos ou minorias.
Considerações finais: um presente à China, um alerta ao Ocidente
Ao fim da leitura, torna-se evidente que On China é mais do que um livro: é um gesto diplomático. Sua publicação, seu tom respeitoso, sua tentativa de traduzir a China para o Ocidente, tudo aponta para um objetivo claro: reduzir a margem de erro no entendimento entre duas potências que podem moldar o século XXI.
Essa missão, no entanto, não é isenta de riscos. Ao oferecer uma leitura positiva da trajetória chinesa, Kissinger contribui para suavizar a imagem internacional de um regime que ainda opera sob lógicas autoritárias, repressivas e altamente centralizadoras. Seu gesto de conciliação pode ser visto como uma tentativa de evitar o choque entre civilizações — ou como uma forma sutil de legitimação de um projeto de poder alternativo.
Em última instância, o livro reforça o papel da diplomacia como uma arte que exige não apenas negociação, mas compreensão cultural, leitura de longo prazo e realismo estratégico. Para estudantes e analistas de Relações Internacionais, On China permanece como uma leitura indispensável — não pela sua neutralidade, mas justamente pelo contrário: por representar, com rara sofisticação, o olhar de um diplomata em ação, mesmo décadas depois de ter deixado o cargo.
Ficha técnica e referência
Título: On China
Autor: Henry Kissinger
Editora: The Penguin Press (2011) / Editora Objetiva (2011, edição em português)
Páginas: 586
ISBN: 978-1-59420-271-1 (inglês) / 853900299X (português)
Disponível na Amazon.
Referências complementares:
- VILLAMIZAR LAMUS, Fernando. Reseña de On China de Henry Kissinger. Revista Enfoques: Ciencia Política y Administración Pública, v. IX, n. 15, p. 195–199, 2011. Disponível em: Redalyc.
- KISSINGER, Henry. On China. New York: The Penguin Press, 2011.
- KISSINGER, Henry. Sobre a China. Tradução de Vera Whately. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br