As identidades e políticas exteriores da Argentina e do Brasil, em uma perspectiva histórica, podem ser observadas através da sua assimetria de pensamentos em relação ao modo de se projetar tanto internacionalmente quanto em um contexto regional, uma vez que tiveram percepções e elaborações a partir de concepções particulares fundamentadas na relação entre identidade e política exterior de cada país. Através dessas identidades próprias, as suas projeções internacionais divergiram ao longo da história, mas também convergiram, como, por exemplo, nos anos 90 com a criação do Mercosul. O objetivo deste trabalho foi descrever como ocorreu a formação das políticas exteriores da Argentina e do Brasil, os principais atores no cenário latino-americano e, dentro deste contexto, localizar a inserção da América Latina no discurso da política exterior do Brasil.
Discursos Brasileiros
Na análise dos discursos de identidade internacional do Brasil é possível verificar que o país se baseou na existência de duas tradições discursivas: a primeira, reconhecida como “realista-liberal” expõe o Estado brasileiro como pacifista, harmoniosamente englobado geopoliticamente, associado aos Estados Unidos e ocupando uma posição destacada e de prestígio no sistema internacional. Devido a essas características, a política exterior brasileira conseguiu estabelecer-se como um âmbito de Estado que demanda consenso e continuidade, colocando-se acima das políticas públicas (MERKE; 2008)
Em 1889, o Brasil figurou-se como excepcionalidade em relação ao contexto latino-americano, como uma monarquia que havia herdado seu sistema político do Império português, que fez o território coincidir com a nação desde o início e, portanto, manteve a unidade política e a coesão cultural. Com relação à aliança do Brasil com os Estados Unidos, não houve, pelo Estado brasileiro, a imposição de resistência para a política externa americana denominada Doutrina Monroe. Assim sendo, o Brasil assumiu uma posição liberal no cenário internacional, que foi influenciada pela posição americana, com a abertura do seu comércio e fomento da imigração. Tendo em vista a proibição do comércio de escravos e, por outro lado, a sua relação com a região latino-americana, resolveu adotar uma forma mais realista de atuar, procurando evitar um conflito bélico, mas buscando uma aproximação com seu país vizinho, no caso a Argentina.
A segunda tradição discursiva, denominada “realista-desenvolvimentista” coloca o Brasil como um ator universal dentro do sistema internacional, com a ideia de encontrar outros parceiros ao redor do mundo. Nessa tradição, a imagem do Brasil como um país pacifista e satisfeito geopoliticamente prosseguiria, assim como o desejo de constituir-se como uma potência média com projeção global.
Assim, a política exterior seguiria direcionada pelo discurso de consenso e continuidade articulada pelo principal ator dentro da política externa brasileira, que é o Itamaraty. Dessa maneira, a tradição “realista-desenvolvimentista” manteve os três traços da identidade realista-liberal, que são: satisfação geopolítica, autonomia da política exterior e Brasil como potência, abandonando a aliança exclusiva com os Estados Unidos. Por consequência dessas ações, inevitavelmente a ideia de Brasil como uma potência colidiu com a resistência argentina de permitir a liderança do Brasil no contexto regional. A identidade universalista/globalista não buscou propriamente na América Latina seu maior espaço de projeção internacional, tendo outros focos na sua política exterior. A partir desse momento o Brasil iria então aproximar-se da Ásia e África, assim como procurar parceiros na Europa Oriental. O discurso brasileiro seguiu inclusive no apoio da descolonização dos demais países que eram colônias de Portugal.
Dos atores relevantes na política externa brasileira se destacam as Forças Armadas e o Itamaraty. De posições geralmente divergentes, o Itamaraty se destacou pelo seu discurso diplomático, mas também pelo discurso acadêmico; ocupando, até os dias atuais, uma posição privilegiada e positiva nos cenários político e público.
O Brasil, no entanto, jamais adotou uma política revisionista e tampouco pautou a sua agenda internacional como um Estado revolucionário. Dentro do seu contexto doméstico havia outras questões a serem discutidas, como as pautas dos sertanejos, dos negros e a aversão aos comunistas. Tais temas, no entanto, foram assimilados e incluídos com o seu discurso de harmonia social e de ordem política.
Discursos Argentinos
Em relação aos discursos de identidade internacional da Argentina, pode se dizer que quatro tradições discursivas surgiram. A primeira identidade internacional foi a do “liberalismo”, na qual o Estado argentino, uma nação civilizada, demonstrava ser uma república onde se institucionalizava a paz e se praticava a política de mercado multilateral para os mercados internacionais.
A política exterior argentina caracterizou-se então por uma identidade composta principalmente por lineares europeus modernizantes. Os elementos sine qua non do programa liberal, que são a imigração e o comércio, foram os norteadores da política exterior argentina até o começo do século XX, quando o país se baseou em uma identidade nacional cosmopolita em que se absorve ideias, dinheiro e pessoas advindas da Europa. O regresso do liberalismo fundamentou-se por contextos domésticos e internacionais; todavia, o cerne da política exterior argentina continuou com as características elementares de um Estado pequeno, porém alinhado com uma potência hegemônica do sistema internacional, o que garantia a sua abertura comercial.
A segunda tradição discursiva argentina é o nacionalismo e suas várias declinações. Dentre elas, a declinação territorial fundamentou-se em uma perda de territórios argentinos para potências estrangeiras, o que resultou em uma necessidade de tomada de ações para evitar a continuidade das perdas. A identidade internacional “unanimista” do nacionalismo acabou por caracterizar a Argentina como um país errôneo em suas condutas de política externa, concretizando a ideia de que era um Estado que não poderia se desvincular de uma política de Estado no cenário internacional; bem como demonstrando a necessidade de um vínculo com toda a população argentina nos temas de assuntos externos. Ainda como resultado da abordagem nacionalista, temos a declinação “decadentista”, que solidificou a Argentina como um país que perdeu seu lugar de destaque no mundo.
Assimilando os três discursos nacionalistas, a história argentina é identificada como uma que obteve perdas e ausências. As perdas de território, de projeção internacional e a incógnita posição argentina no mundo tiveram como consequências na sua política externa a adoção da vertente unanimista, que se embasou na construção de um projeto de país compartilhado por todos os setores da sociedade e a adoção de uma posição anti-decadentista, para recuperar o Estado argentino desaparecido, ajudando, assim, o país a voltar para onde estava. Tratava-se de um projeto nacional de inserção da Argentina de modo autônomo.
No contexto regional, o papel da América Latina para a Argentina possuía uma posição dicotômica: por um lado, um espaço de cooperação e solidariedade latino-americana; por outro lado, uma posição defensiva, sendo um espaço de rivalidade por território, influência e recursos naturais.
A terceira tradição, que foi chamada de “desenvolvimentismo”, classificou o Estado argentino como subdesenvolvido, uma vez que o país é localizado na periferia do sistema internacional. Dessa forma, as identidades políticas definiram-se em desenvolvimento e subdesenvolvimento e não em capitalismo ou comunismo. Portanto a política exterior argentina deveria ser instrumento de desenvolvimento para a industrialização do país e de integração social e econômica entre suas diversas regiões, identificando, assim, o Estado argentino com o ocidente em busca de uma visão própria do seu subdesenvolvimento.
Entretanto, existiram diversas ramificações de interesses internos e externos associados para manter o país como agroexportador. Surgira, então, uma ambiguidade na identidade internacional do país: por um lado, caracterizada por modelos políticos e econômicos similares e, por outro lado, uma integração econômica por parte do Estado argentino para proteger o seu desenvolvimento doméstico e assim evitar a dependência de sócios regionais com maior poder relativo de compra.
Por último, a identidade internacional normativa abarcou definir a Argentina como um membro responsável do sistema normativo internacional e um forte defensor da isonomia jurídica dos Estados na comunidade internacional. Por outro lado, a política exterior argentina se viu com uma vocação estrutural de encarar os problemas de política externa em termos jurídicos antes que políticos. A América Latina ocupou um papel sublime na identidade internacional normativa por ter sido um espaço por excelência para exibir os princípios legais (pacifismo, não cobrança compulsória de dívidas, não intervenção nos assuntos internos, recurso a medidas de arbitragem etc.).
Perspectivas internacionais
As percepções de mundo foram distintas no caso brasileiro e argentino. No caso do liberalismo argentino, a percepção se concretizou com uma maior identidade cosmopolita do que no caso brasileiro. Com o declínio da Grã-Bretanha e a ascensão norte-americana, o país se adaptou a uma relação especial com este, o que se deu talvez por estratégia ou convicção do sucesso nessa relação, o que durou até a segunda metade do século XX. A relação com a Grã-Bretanha ainda perdurou, devido às relações de comércio entre os países e, também, pela relação conflituosa existente com Washington.
Conforme se depreende da história da política externa brasileira, a ascensão do nacionalismo brasileiro não abandonou a sua relação de pragmatismo com os Estados Unidos; porém, o Brasil procurou avançar em relações complementares que caracterizaram uma maior autonomia na sua inserção no contexto internacional. Uma amostra disso é o aprofundamento das relações brasileiras com a África e Ásia, culminando na criação dos BRICS, que engloba no bloco países de quatro continentes diferentes.
Uma análise sobre o regionalismo
Em relação à América Latina, percebe-se que há uma maior identidade do Brasil e da Argentina com a região. No começo, devido às diferenças de parcerias entre o Brasil, que tinha como seu principal parceiro os Estados Unidos, e a Argentina, que tinha a Grã-Bretanha, existiu uma certa rivalidade entre os dois países vizinhos e, por consequência, uma baixa inserção regional de ambos os Estados. Contudo, a partir da proclamação da República no Brasil em 1889, o país passou a ter um maior entendimento sobre a necessidade da sua inserção na região sul-americana.
A ascensão do desenvolvimento em ambos os países foi terreno fértil para que houvesse uma maior identificação dos Estados com a região, pois o discurso não estaria mais respaldado apenas em questões raciais ou religiosas, e sim em questões sobre o desenvolvimento. Brasil e Argentina obtiveram então a compreensão da sua localização regional no contexto internacional, ambos considerados estados subdesenvolvidos localizados na periferia do sistema capitalista.
Diante disso e, com certa preocupação dos dois países com relação a necessidade da cooperação sul-sul, ocorreram mudanças a partir da abdicação do Brasil da sua relação privilegiada com os Estados Unidos. Sendo assim, o Estado brasileiro passou a ter uma visão universalista e autônoma de sua política exterior, buscando outros parceiros na África, Ásia, Rússia e Europa Oriental. Já na Argentina, com o abandono do modelo liberal e da relação privilegiada com a Grã-Bretanha, houve uma nova articulação dentro da esfera do Ocidente, com a inclusão da América Latina.
O processo de integração do Brasil nesse contexto regional pode ser analisado de forma cronológica desde o início da sua inserção na década de 60. Na década de 70, no entanto, já no auge da ditadura militar no Brasil, por conta de certos altos e baixos, a relação permaneceu estagnada. Entretanto, foi na década de 80 que ocorreu uma estabilização da relação do Brasil com a região. A grande elevação do patamar de relacionamento entre Argentina e Brasil, iniciada em 1985, com raízes desde 1980, foi um fato importante para a política externa brasileira.
A Guerra das Malvinas, ocorrida em 1982, foi fator preponderante em muitos aspectos para o futuro da Argentina e da região do Cone Sul. Além de ter promovido a redemocratização do país, foi imprescindível para a aproximação entre Buenos Aires e Brasília. A posição assumida pelo Brasil de fundamentada solidariedade aos argentinos durante a Guerra das Malvinas propiciou a aproximação sincera entre os dois Estados, que afluiu logo em seguida com a ascendência de governos civis ao poder.
Durante os mandatos de Raul Alfonsin e José Sarney, os presidentes da Argentina e do Brasil expressaram pontos de vistas em concordância sobre vários assuntos, por meio de comunicados e declarações oficiais, culminando, em 30 de novembro de 1985, na Declaração de Iguaçu; fazendo com que ambos passassem a atuar em convergência nas suas decisões na seara internacional. Em 1986, em Buenos Aires, Alfonsin e Sarney assinaram a Ata para a integração Argentina-Brasil e protocolos correlacionados.
E por fim, na década de 90, com a ascensão de governos neoliberais, representado pela figura de Fernando Collor de Mello no Brasil e de Carlos Menem na Argentina, foram implementadas mudanças substanciais no âmbito doméstico.
Porém, vale ressaltar que ambos os países redefiniram suas relações com a região e seus níveis de internacionalização de maneiras distintas. A Argentina optou por um cone-sul mais integrado e pacífico, e criou o discurso mais sedimentado de toda a elite política argentina, que sempre será o argumento básico ao qual retornará quando outras linhas discursivas não puderem conter a pressão, como por exemplo, o alinhamento com os Estados Unidos ou a noção de que os argentinos são europeus periféricos.
No caso do Estado Brasileiro, o país aposta no Mercosul como ponto inicial de sua política exterior, contudo continua a enxergar-se como um player significante dentro das relações internacionais e, portanto, vislumbra o Mercosul como uma escala para buscar amplificar a integração regional em toda a América do Sul e, a posteriori, projetar-se internacionalmente. Assim sendo, o Brasil fomenta uma identidade sul-americana mais globalista e universal, algo que reflete na sua relação com os países formadores do BRICS (Brasil, Índia, África do Sul, Rússia e China).
Perspectivas domésticas
Conforme podemos analisar, o Brasil pôde desenvolver um Estado mais robusto e eficiente, comparado com o Estado argentino. Isso permitiu ao Brasil, no seu discurso, uma maior autonomia em assuntos de cunho externo em relação aos assuntos domésticos. Através dessa autonomia, o Brasil e seus respectivos governos puderam colocar em prática suas visões de mundo em sua política exterior. Em comparação com o caso argentino, houve uma maior influência na política doméstica e na política exterior, que teve como resultado as diplomacias paralelas, com a ocorrência de modificações bruscas e contraditórias.
Algumas diferenças entre a política exterior do Estado argentino e do brasileiro dizem respeito à evolução da identidade política nacionalista. O nacionalismo brasileiro se fundamentou através de tradição laica, pragmática e com um local marginal designado para as forças armadas. Em dicotomia com o Estado brasileiro, o nacionalismo argentino baseou seus preceitos em uma ascensão católica com um menor grau de pragmatismo, porém, mais doutrinário, tendo as forças armadas como ator central.
No tocante a questão econômica, o nacionalismo argentino, devido a sua história, foi associado mais ao campo e a defesa de um modelo agroexportador, diferentemente do nacionalismo brasileiro, que se mostrou mais propenso a uma vocação industrial. Sendo assim, a identidade brasileira possibilitou uma maior interação entre inserção econômica e política exterior. Por outro lado, a identidade argentina se caracterizou mais pela diplomacia, seguridade e direito internacional. Em síntese, a chancelaria argentina ganhou notoriedade em uma cultura diplomática mais centralizada em assuntos de conflito e cooperação do que em assuntos de desenvolvimento, algo que mudou durante os anos 90.
As assimetrias entre Brasil e Argentina refletem a ambição que o Estado brasileiro possui de ser uma potência regional com projeção global. Na Argentina, esse discurso foi mais marginal, não sendo incorporado por nacionalistas e nem por liberalistas. Um exemplo evidente dessa ambição de projeção global do Brasil é a aspiração que o país possui, incentivada por outros Estados, de tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU).
Joseph Nye, teórico de Relações Internacionais, que atualmente está presente em praticamente todas as análises da política internacional, possui um termo que pode ser utilizado para descrever a identidade brasileira, chamado de Soft power; este pode ser a síntese do discurso do Barão de Rio Branco sobre a identidade brasileira de ser um país pacífico, conciliador e consolidado geograficamente através de suas barreiras bem definidas.
A inserção da América do Sul no discurso brasileiro
Sobre a ambição do Estado brasileiro em assumir um protagonismo mundial, Celso Amorim elucida:
Às vezes nos perguntam se o Brasil quer ser líder. Nós não temos pretensão à liderança, se liderança significa hegemonia de qualquer espécie. Mas, se o nosso desenvolvimento interno, se as nossas atitudes […] de respeito ao direito internacional, da busca de solução pacífica para controvérsias, de combate a todas as formas de discriminação, de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, se essas atitudes geram liderança, não há por que recusá-la (AMORIM; 2003)
No caso argentino, diferentemente do Brasil, que exibe uma visão proposta para o futuro, o Estado argentino exibe uma visão voltada para o passado, devido a sua própria discordância de narrativas entre o plano doméstico e a política exterior. Essa diferença de propostas entre Brasil e Argentina demonstra uma assimetria crucial entre os Estados. No caso brasileiro, a estrutura temporal desenvolve a favor de projetar a política exterior para o futuro remetendo ao discurso de Rio Branco para nortear o presente. Em relação ao caso argentino, a estrutura temporal trabalha em prol de projetar uma política exterior fundamentalmente como uma descontinuidade com o passado. O resultado disso é que a identidade brasileira é uma identidade que promove a discussão sobre os meios da política exterior, enquanto que no caso argentino a discussão está acerca dos fins, dos resultados da política exterior. No caso brasileiro, o Itamaraty representa uma instituição sólida e de reputação ilibada perante a sociedade no tocante a política exterior.
O Itamaraty, pela natureza de suas atividades, exerce suas funções em estreita coordenação com os demais ministérios e órgãos de governo, sempre com o objetivo compartilhado de buscar a eficiência governamental na defesa dos interesses nacionais. O órgão defende uma busca pelo desenvolvimento, pela autonomia e por total influência nas decisões do Estado Brasileiro sobre assuntos internacionais.
Há uma teoria no campo das Relações Internacionais que se encaixa perfeitamente nesse contexto de identidade nacional e internacional dos Estados que se chama Construtivismo. Essa teoria pode iluminar características importantes da política internacional que antes eram enigmáticas, assim como tem implicações práticas cruciais para a teoria internacional e as pesquisas empíricas (ADLER; 1999)
Ou seja, segundo a teoria Construtivista, as identidades dos Estados são socialmente construídas adquiridas pelo processo de relacionamento entre eles mesmos. O conhecimento e a interpretação não são apenas compatíveis com a boa ciência social, mas são, de fato, indispensáveis para a compreensão e a explicação da construção social da realidade internacional. O construtivismo pode possuir a chave para o desenvolvimento de teorias dinâmicas sobre a transformação dos atores internacionais, padrões institucionalizados, novas identidades, interesses políticos e sistemas de governo (ADLER; 1999).
O maior símbolo da integração entre o Brasil e a América do Sul se deu entre 1907 e 1909, sob a liderança e discurso do Barão do Rio Branco, que somente foi concretizado em 1915. O discurso de Rio Branco sobre americanismo e América do Sul foi estruturado em três diretrizes principais: a definição das fronteiras, o aumento do prestígio internacional do país e a afirmação da liderança brasileira na América do Sul (BURNS; 1966). Para o sucesso dessas diretrizes, o Barão de Rio Branco elegeu uma política de “aliança não escrita” com os Estados Unidos, modificando o eixo da política exterior brasileira em direção a Washington com gestos simbólicos.
A despeito do universalismo, demonstrado pela forte participação nos trabalhos da Liga das Nações, pode-se reiterar que a política externa brasileira durante o período da República Velha cumpriu os objetivos traçados por Rio Branco: desenvolvida por um lado para os Estados Unidos na forma de “aliança não escrita” e, por outro lado, dotada de uma ativa política sul-americana restrita aos assuntos do Cone Sul. A criação da Cepal, beneficiou a identidade comum dos países latino-americanos. A proposta da Operação Pan-Americana (OPA) foi definida como a primeira iniciativa brasileira feita com base em “um estado de consciência verdadeiramente latino-americano (MRE; 1958)".
A OPA é uma das iniciativas da diplomacia brasileira que podem ser consideradas fundamentais para a compreensão das inflexões da ação internacional do Brasil e do processo de amadurecimento e ampliação dos horizontes da sua visão de mundo (LESSA; 2008). A Operação Pan-Americana foi uma iniciativa brasileira sob a presidência de Juscelino Kubitschek que teve como propósito maior unir os países do continente em torno da temática do desenvolvimento, chamando a atenção dos Estados Unidos para região.
A Política Externa Independente (PEI), adotada a partir de Jânio Quadros, corroborou para essa identidade latino-americana do Brasil e identificou interesses comuns entre o Estado brasileiro e os demais países em desenvolvimento, caracterizando então o Brasil como um país de Terceiro Mundo.
A PEI, funcionou a partir de Jânio Quadros, continuou com João Goulart e foi interrompida com o advento do golpe militar em 1964 com a ascensão de Castelo Branco ao poder. Entretanto, a PEI é retomada nos seguintes governos militares de Costa e Silva e Geisel. A PEI foi o embasamento inclusive da política externa de Lula, situando o pensamento diplomático brasileiro e a atuação da política externa brasileira ativa (MANZUR; 2014).
A política do “pragmatismo responsável”, sob o impacto da crise do petróleo e das crescentes fricções com os Estados Unidos, acentuou a identificação do Brasil com os países do Terceiro Mundo e com a América Latina (SANTOS; 2005).
Com o firmamento do acordo tripartite Brasil-Argentina-Paraguai, concluído durante o governo militar de João Figueiredo, a aproximação com a Argentina e suas possíveis intrigas foram realizadas com sucesso. Em 1979, durante a Assembleia Geral da ONU, o chanceler brasileiro Saraiva Guerreiro elucidou:
Embora conservando seus traços e peculiaridades, os países da América Latina se aproximam cada vez mais. Com a expansão do campo de entendimentos, será necessário acordar novas formas de ação conjunta. Por sua parte, o Brasil está pronto a cooperar e é nosso interesse que a paz e o descontrai mento prevaleçam em nossa região e que os países da América Latina possam enfrentar, ombro a ombro, a luta comum pelo desenvolvimento. Com esse objetivo desejamos trabalhar com outras nações de todas as partes da América Latina (SEIXAS; 1995).
O fato sublime dessa relação latino-americana que o Brasil passou a dispor está marcado no documento mais importante do Estado Brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, onde consta que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (Constituição; 1988)"
A superação das desavenças entre Brasil e Argentina foi o ponto de partida para o que futuramente conheceríamos como Mercosul, um dos grandes parâmetros da identidade internacional brasileira. A expressão “América do Sul”, com a afirmação do conceito de América Latina (inventado em 1850, mas só consolidado completamente após 1945), passou a definir uma entidade geográfica que inclui os doze países americanos ao sul da República do Panamá e a Guiana Francesa (SANTOS; 2005). Foi através da primeira gestão do chanceler Celso Amorim que a diplomacia brasileira retomou a concepção de América do Sul, o que se deu em um primeiro momento por meio da formulação de uma proposta de Área de Livre Comércio da Americas (ALCA).
No primeiro mandato do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, a proposta da ALCA foi paulatinamente esquecida e a idealização de integração sul-americana bastante mitigada. A despeito do enfoque bastante específico, a noção de América do Sul, depois de 2000, voltou a ser um dos conceitos-chave do discurso diplomático brasileiro. Com as Cúpulas de Brasília (2000) e Guayaquil (2002), a definição de “América do Sul” na retórica diplomática brasileira adquiriu, finalmente, contornos definidos – englobando as doze nações (e só estas), que foram convidadas para participar dos dois encontros, ainda que tenha havido observadores de outros países (SANTOS; 2005).
Com a ascensão de Luís Inácio Lula da Silva ao governo brasileiro, a América do Sul passou a ser demonstrada no discurso diplomático com maior primazia brasileira. Logo após a sua vitória nas urnas, uma das pautas do seu discurso foi a questão da importância estratégica do Mercosul para o seu governo, que poderia solidificar uma espécie de embasamento material para a união política da América do Sul:
Estamos profundamente empenhados na integração da América do Sul. […] Acreditamos em um amplo processo de aproximação política, social e cultural entre os países da região, processo no qual o Mercosul tem papel de destaque. […] O Mercosul é um projeto estratégico e para seu aprofundamento existe vontade política de todas as nações que o integram (LULA DA SILVA, 2002)
Muitas das iniciativas do governo Lula da Silva situam-se na vertente das negociações comerciais internacionais e na busca de coordenação política com países em desenvolvimento e emergentes, com destaque para a Índia, África do Sul, China e Rússia, que formariam a posteriori o BRICS. As relações com a América do Sul também merecem particular atenção. Segundo o presidente “nós chegamos à conclusão de que era preciso juntar toda a América do Sul para fazer um Mercosul forte” (Lula da Silva, 20.11.2003). Desse modo, a intensão brasileira é, conforme sua capacidade, ativismo e recursos, desenvolver relações cooperativas com todos os países da região.
A partir de uma ênfase retórica desenvolveu-se a Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA) dos países sul-americanos, que consistiu em um projeto de aproximação entre os países por meio de investimentos em infraestrutura. A IIRSA foi pensada por Fernando Henrique Cardoso em 2000 e foi considerada um dos momentos iniciais dos processos de integração. A IIRSA relançou a integração regional de forma prática em investimentos em infraestrutura.
Percebe-se que a relação de inserção sobre a América do Sul no discurso brasileiro foi evoluindo categoricamente ao longo dos anos, De forma complementar, partiremos do suposto construtivista de que as estratégias políticas dos países são socialmente construídas por ideias a respeito da realidade social e do mundo externo (BERGER; 1997)
Conclusões
A partir desta análise descritiva sobre as identidades nacionais da Argentina e do Brasil, e suas respectivas assimetrias com relação a política exterior dos Estados no cenário internacional ao longo da história, verificou-se que a existência de semelhanças entre os dois países foi também responsável pela convergência e pela soma de interesses comuns para a criação do então MERCOSUL.
Importante frisar que a partir daí a América do Sul passou a ter maior relevância no contexto regional e internacional para o Estado brasileiro, onde se nota uma visível evolução desse posicionamento após a década de 90, quando então fora de fato adotado pelo Brasil como uma política de estado.
A manutenção de uma relação mais estreita do Brasil com a América do Sul, assim como das relações entre as duas principais potências da América Latina, que são a Argentina e o Brasil, aponta para a colheita de bons frutos para a região e consequentemente para o Estado Brasileiro.
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