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Reflexões sobre a decadência do Estado-nação

Quando falamos em Estado-nação estamos a falar de um termo bastante frequente na contemporaneidade, seja nos discursos de figuras políticas e autoridades internacionais, discussões académicas acerca do tema ou até mesmo em manifestações populares. Ao nos debrussarmos sobre a bibliografia relativa a esta nomenclatura encontramos diversas teses, algumas mais antigas e outras mais recentes, que nos permitem um melhor entendimento desta em suas mais diversas áreas: sociologia, ciência política, relações internacionais, economia e outras. Todavia, embora este termo tenha se tornado popular nas mais diversas áreas do conhecimento, cada uma destas oferencendo uma perspectiva diferente sobre este conceito, um aspecto em particular tem se tornado bastante recorrente nas discussões e tem emergido quase como um consenso entre seus debatedores, é a ideia de que o Estado-nação estaria em declinio.

Muitos são os argumentos utilizados para discorrer sobre a tese de uma atual crise do Estado-nação, entre eles os principais são: um possivel efeito colateral da globalização que teria ocasionado demasiada interdependência entre os Estados no século XXI, o multiculturalismo e a tese da sociedade heterogenia, bem como o ressurgimento de grupos e movimentos nacionalistas que utilizam da sua percepção extremada de Estado-nação como discurso de ataque as instituições democraticas. Deste modo, para que se possa refletir melhor sobre a atual conjuntura do Estado-nação, bem como os elementos que corroboram para uma possível crise, se faz necessário antes termos em vista todos os fundamentos e teses que o compõem. Dito isto, vamos esclarecer primeiro a diferença entre o que vem a ser Estado e Estado-nação.

O que é o Estado?

A concepção do que vem a ser um Estado é algo debatido há muitos séculos e por diferentes personalidades. O grande pioneiro do pensamento liberal clássico, John Locke (1632-1704), via o Estado como um mal necessário para a sobrevivência da humanidade. Em uma de suas obras mais famosas, Segundo Tratado Sobre o Governo Civil (1689), este faz uma reflexão sobre as abstrações iluministas de sua época, de forma a discorrer sobre o chamado estado da natureza humana e dos direitos inerentes ao homem, estes que por sua vez existem apenas pelo fato de este ser livre e imerso na sociedade civil e que qualquer forma de repressão e absolutismo que viesse do Estado deveria ser combatida pela população, não como um direito, mas como um dever. Conforme nos salienta em seu tratado,

A razão por que os homens entram em sociedade é a preservação de sua propriedade; e o fim a que se propõem quando escolhem e autorizam um legislativo é que haja leis e regulamentos estabelecidos, que sirvam de proteção e defesa para as propriedades de todos os membros da sociedade, para limitar o poder e moderar a dominação de cada parte e de cada membro da sociedade (Locke, 1689, p. 95).

Logo, percebe-se que para o filosofo iluminista inglês o que define a concepção de Estado em uma sociedade é o consenso, este que por sua vez deriva do que este chamou de o Contrato Social. Ou seja, os homens a fim de salvaguardar aquilo que lhes é próprio bem como seus direitos que seriam no discurso lockiano concedidos por Deus, sendo assim direitos inalienaveis, concordariam com a existência de um Estado.
O Estado por sua vez, deveria agir apenas como um mero agente guarantidor do estado humano da natureza, mantendo a ordem e permitindo aos individuos membros daquela sociedade civil o pleno gozo de suas prerrogativas dentro daquilo que é entendido como o estado de liberdade.

Ao caminharmos por esta linha de raciocinio de Locke, pode-se afirmar que o Estado, uma vez constituido pelo consentimento da sociedade civil, tem o poder e a autonomia para proteger os membros daquela sociedade, ainda que para tal seja necessário o uso da força, correto? De fato, o Estado é possuidor do monopólio legítimo da violência tendo autonomia para exercê-lo quando necessário com o intuito de proteger a sociedade civil que a legitima, porém tal aspecto também nos leva para outra discussão, esta agora de caráter um pouco mais sociológico acerca do Estado, a relação de dominação e poder proposta pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920).

Em seu ensaio A Política como Vocação (1919), Weber nos sugere que todo Estado se funda por via da força e da submissão, afinal, sem a existência da violência humana na sociedade civil a ideia original de formação de um Estado talvez nem mesmo fosse necessaria, no entanto uma vez que os homens ao mesmo tempo em que gozam da racionalidade também são alimentados pelas paixões morais da ambição, egoismo e vaidade, torna-se necessario a existência de uma instituição como o Estado para manter a ordem social. Neste sentido, Weber elucida algo que pode até soar uma obviedade, mas que não deixa de refletir a realidade, para que o Estado exista se faz necessária a submissão de uns ao poder de outros.

O Estado contemporâneo como uma comunidade humana (…) reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. (…) Tal como todos os agrupamentos políticos que historicamente o precederam, o Estado consiste em uma relação de dominação do homem sobre o homem, fundada no instrumento da violência legítima (isto é, da violência considerada como legítima). O Estado só pode existir, portanto, sob condição de que os homens dominados se submetam à autoridade continuamente reivindicada pelos dominadores. (Weber, 1919, p. 37-38).

Deste modo, pode-se afirmar que o Estado como criação oriunda da sociedade civil, possue atribuições e competências que somente cabem a si próprio, como o monopólio da violência, por exemplo, contudo da mesma forma que este tem maior capacidade de potência como instituição, paradoxalmente também esta sujeita à vigilância e a vontade da sociedade civil que a legitima e torna possível sua existência como tal. Assim sendo, se o Estado é entendido como um produto resultante da sociedade que tem como seus respectivos deveres: a defesa de seu território, povo e dos direitos naturais dos quais estes são detentores, o que viria a ser então o Estado-nação?

A Consumação do Estado-nação

O termo Estado-nação é comumente explorado e utilizado nas mais diversas áreas do conhecimento científico, possuindo assim multiplas definições plausíveis, contudo alguns elementos comuns são praticamente consenso entre seus estudiosos.

O mais relevante deles talvez seja a carga de identidade social que é atribuida ao Estado-nação, ou seja, Estado-nação não seria somente uma mera instituição referenciada por um prédio pomposo onde os lideres políticos se reunem para discutir as pautas presentes na ordem do dia, seria algo um pouco mais subjetivo e transcendente. Este seria correspondente a tudo aquilo que é proprio aos membros daquela sociedade civil, como: a cultura, a história, o idioma e demais peculiaridades. Logo, o Estado-nação inglês, por exemplo, não se resume apenas aos cavalheiros reunidos em Westminster, mas a toda uma rede de elementos históricos, políticos e sociais que transcedem o tempo cronológico e convergem de uma forma quase híbrida com a identidade característica da sociedade britânica.

Neste sentido, para além de uma relação técnica usual do Estado com a sociedade civil – esta que por sua vez se resume a questões objetivas como: proteção do território, sociedade, legislação, direitos e deveres – a relação da sociedade com o chamado Estado-nação surge de um processo muito mais singular quase como uma relação sistólica e diastólica do povo para com a instituição. Esta representada no identitarismo nacional e político do povo para com a entidade que o governa, dado por meio de aspectos mais subjetivos. Como nos elucida Habermas (1995),

Somente a percepção de uma identidade nacional, cristalizada em torno de uma história, língua e cultura comuns, somente a consciência de pertencer à mesma nação é que fez com que pessoas distantes, espalhadas em amplos territórios, se sentissem politicamente responsáveis umas pelas outras. Dessa maneira, os cidadãos passaram a se ver como partes de um mesmo todo, quaisquer que fossem os termos legais abstratos em que esse todo pudesse estar constituído. (…) Essa identidade cultural fornece o substrato socialmente integrador para a identidade política da república (p. 92-93).

Destarte, enquanto o Estado é tido como uma instituição de caráter político que tem como fim zelar pela soberania de seu territorio e a proteção de seu povo, o Estado-nação pode ser vista como uma relação mais subjetiva entre a imagem do Estado e a forma como o povo se relaciona com esta entidade. Dito isto, convém agora salientar a seguinte indagação, o que estaria a ocasionar a crise do Estado-nação à nivel global?

A Decadência do Estado-nação

Um dos argumentos mais recorrentes entre os estudiosos do tema é a ideia de que a crise do Estado-nação poderia estar se mostrando na contemporaneidade como um efeito colateral da globalização e da integração politica econômica que fora intensificada no pós-guerra. Em outras palavras, conforme as relações comerciais e políticas entre os paises se intensificaram após o periodo da Segunda Guerra Mundial, isso paradoxalmente além de ter contribuido para a edificação dos Estados, especialmente no continente Europeu, também teria resultado em um demasiado grau de interdependência entre estes e assim você teria a perca de autonomia estatal dos agentes.

Evidentemente, que há aqueles cuja argumentação mostra-se favorável à integração econômica, afinal, subsiste a tese de que essa maior interdependência entre os Estados bem como o protagonismo de atores internacionais como: ONGs, corporações e grupos transnacionais, contribuiriam no longo prazo para uma ordem mundial mais amigável, flexível e cooperativa entre estas entidades. (Keohane & Nye, 1977, p. 29-38).

Todavia, também é notório que nos últimos anos o mundo tem testemunhado a ascenção política de grupos e personalidades extremistas que tendem a atacar o fenômeno da economia global e sua integração. Seja no velho continente, na América do Norte ou no Extremo Sul do continente Americano, o discurso de ataque à globalização fazendo alusão a questões como: defesa, soberania, autonomia estatal, multiculturalismo e demais outros refletem muito esta crise pela qual passa o Estado-nação. Como nos traz Nayyar (2015) acerca desta questão de mercado,

Do final da década de 1940 até meados da década de 1970, a idade de ouro do capitalismo, o sistema econômico multilateral possibilitou que os países permanecessem no estado-nação e nas políticas democráticas, limitando o grau de integração econômica internacional. Do final da década de 1970 até o final da década de 2000, a era da globalização, que procurou harmonizar políticas, instituições e leis entre países, possibilitou que os países combinassem a globalização com o Estado-nação, mas à custa da política democrática. Nesse construto, é concebível contemplar um futuro, por mais improvável que seja, para os países combinar política democrática com globalização, dispensando o Estado-nação e optando por um governo mundial ou federalismo global. (p. 391).

O argumento salientado por Nayyar (2015) mostra-se de fato contundente quando se analisa alguns dos últimos eventos ocorridos no teatro da política mundial, eventos como a eleição do presidente norte-americano Donald Trump em 2016 sob o slogan America First, questões de carater mais regional como o divórcio britânico da União Europeia, o Brexit, ou até mesmo as eleições de personalidades de extrema-direita em países do Leste Europeu, que confirmam essa tese apresentada por Nayyar (2015).

De fato, a globalização fora o principal aspecto que contribuiu para a chamada “era de ouro” da economia estatal no longo prazo, contudo tal fenômeno colocou em posição de xeque a política democrática e a própria concepção de Estado soberano, o que serviu de combustível para partidos e personalidades radicais ganharem maior visibilidade na contemporaneidade.

Todos estes eventos exemplificados a priori, bem como a tese de destruição dos alicerces da política democrática, se refletem hoje nos tais movimentos nacionalistas que estamos a assistir ao redor do mundo. Importante destacar que “o nacionalismo é a ideologia que nasce com o estado-nação, é a ideologia da autonomia e do desenvolvimento econômico nacional” (Bresser-Pereira, 2008, p. 22). No entanto, caminhando um pouco mais para além da esfera econômica e da globalização também é possível encontrar outros exemplo que, direta ou indiretamente, estão imersos nesta discussão do Estado-nação, um deles é o chamado multiculturalismo e a sociedade heterogenia.

Quando falamos de multiculturalismo, estamos a discorrer de um evento de proporções muito maiores do que um simples intercâmbio cultural que você tem entre Estados, este custuma ser feito com pretensões mais econômicas, políticas ou educacionais e não tende a refletir tão negativamente, porém o multiculturalismo está um pouco além desta dimensão. O multiculturalismo está presente na consolidação de comunidades heterogenias dentro de outra cultura local, ou seja, o surgimento de grupos étnicos de outras regiões do globo, o aumento da presença de refugiados, a percepção de demais culturas, religiões e idiomas e outros aspectos dentro de um mesmo território, todos estes pontos são relativos ao multiculturalismo.

Novamente, há aqueles que endossam a tese do multiculturalismo enxergando-a como positiva, contudo para aqueles que revogam pautas de autonomia estatal, soberania e econômia nacional, o multiculturalismo é visto como forte ameaça. Principalmente pelo fato de que este mexe com uma questão mais inerente do individuo, que é a cultura, valores, história, simbolos e a propriedade, ou seja, tudo aquilo que lhe torna próprio como um ser humano dentro da sociedade civil.

Ainda que a constituição clássica do Estado-nação tenha-se dado com base em certa homogeneidade, hoje o multiculturalismo tornou-se algo categórico das sociedades de nosso tempo, tornando impossível tentar regressar a um ponto comum (Cenci, n.d, p. 06).

Contudo, embora a ideia de fazer um resgate da cultura e simbolos nacionais pareça impossivel, sem acabar por prejudicar ou censurar outras culturas, tal argumento não deixa de estar presente na retórica destes grupos que revogam o direito a preservação de sua própria cultura. Isto ocorre segundo Gonçalves (2006), porque “os seus cidadãos não se consideram meros súbditos do soberano, mas uma sociedade com vínculos horizontais” (p. 282).

Em suma, como se pode observar neste ensaio, o conceito de Estado-nação, que tem sido bastante debatido nos últimos tempos, é uma temática de fato bastante complexa e que traz consigo uma série de particularidades que vão desde o discurso contraditório a globalização e a integração econômica, passando por aspectos sociais e relativos à sociedade original daquele Estado. Todos estes elementos estão presentes em movimentos nacionalistas e nos discursos de maior apelo populista, sendo este último podendo ser feito ora por autoridades políticas ora por grupos e manifestações sociais.

Referências Bibliográficas

Bresser-Pereira, L.C. (2008). Nação, Sociedade Civil, Estado e Estado-Nação: Uma Perspectiva Histórica, Textos para Discussão da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 189, p. 03-22.

Cenci, E.M. (n.d.). Globalização, Estado-Nação e Regimes Supranacionais, [Consultado em: 24 de Abril de 2020], Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/campos/elve_miguel_cenci.pdf

Gonçalves, S.M. (2006). O declínio do Estado-nação: Globalização, integração europeia e reafirmação dos movimentos de identificação cultural sub-estatais, Revista de Estudos Politécnicos, 03 (05), p. 281-296.

Habermas, J. (1995). O Estado-nação Europeu frente aos desafios da globalização: o passado e o futuro da soberania e da cidadania. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, 43, p. 92-93.

Keohane, R.O. & Nye, J.S. (1977). Power and Interdepence: World Politics in Transition, Boston: Little Brown, p. 29-38.

Locke, J. (1689). Segundo Tratado do Governo Civil, Rio de Janeiro: Editora Vozes.

Nayyar, D. (2015). Globalization and democracy, Revista de Economia Política, 35 (3), p. 388-402.

Weber, M. (1919). Ciência e Política: Duas Vocações, São Paulo: Editora Cultrix, 18, p. 36-85.

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