Quando se pensa no principal mecanismo de poder da Federação Russa no cenário global, o que vem à cabeça normalmente é o impressionante poderio bélico deste país. Contudo, uma segunda fonte de influência ainda mais importante vem lenta, porém gradualmente emergindo ao longo das três décadas passadas: a energia. Um gigante no setor de hidrocarbonetos, a Rússia é o principal exportador e segundo maior produtor de gás natural do mundo, bem como o segundo maior exportador e terceiro maior produtor de petróleo. Mais do que isso, desde o final da União Soviética, o Estado russo soube de forma muito hábil converter sua pujança energética numa ferramenta para expandir sua influência no cenário global.
Atualmente, podemos esmiuçar a estratégia energética russa em três eixos principais: a “diplomacia dos dutos”, ou seja, a criação de fortes vínculos de dependência energética sobre a Europa ocidental por meio da venda de hidrocarbonetos via dutos; o controle dos preços e das reservas mundiais desses recursos; e a diversificação de meios de produção de energia para além dos combustíveis fósseis.
A “Diplomacia dos Dutos”
As raízes da diplomacia dos dutos da Rússia moderna podem ser traçadas até a década de 1960. A fim de viabilizar a economia de seus satélites no Leste Europeu e atrelá-los mais vigorosamente ao seu próprio sistema econômico, Moscou iniciou a construção do oleoduto Druzhba (Amizade, em russo) para supri-los com petróleo vindo dos Urais. Na década seguinte, com o suprimento de petróleo do Oriente Médio abalado pela crise da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), Druzhba ganhou novos clientes como os países da Europa Ocidental que, desesperados por garantir seu suprimento energético, estavam dispostos a adquiri-lo até mesmo de seu inimigo soviético.
Ainda que essa primeira experiência de venda tenha sido tímida para os padrões atuais, o enorme influxo de petrodólares por ela gerado deixou uma impressão permanente no imaginário da liderança em Moscou. Não foi então por acaso que, na década de 1990, em meio ao trauma econômico da dissolução da URSS e das “reformas de choque” de Boris Yeltsin, que causaram a queda de mais de 40% do produto interno bruto russo em menos de uma década e levaram a falência grande parte da indústria do país, a exportação de hidrocarbonetos ressurgisse nas mentes do Kremlin como uma forma de reavivar a economia nacional em meio a um cenário desolador.
Afinal, tratava-se de recursos que a Rússia possuía em abundância e que dispunha de amplo know-how para extrair e transportar. Contudo, nesse primeiro momento, a estratégia esbarrou na extrema delapidação em que se encontrava o Estado russo: a maior parte da infraestrutura estava sucateada após anos de falta de manutenção e investimento, e a maioria das firmas de petróleo havia sido privatizada de modo desordenado, estando, portanto, não nas mãos do Kremlin, mas sim na de oligarcas corruptas pouco afeitos a seguir a estratégia de Moscou. Podemos dizer que, embora o plano tenha sido elaborado nos anos 90, nesse período, a Rússia não dispunha dos meios materiais para realizá-lo na prática.
A política energética russa começou a deslanchar em 1999, com a chegada ao poder do presidente russo Vladimir Putin, que não apenas reconheceu a importância econômica do projeto da “Rússia como superpotência energética”, mas também suas implicações geoestratégicas: a criação de fortes vínculos de dependência sobre as grandes economias industriais da Europa por meio do controle de um recurso essencial para o seu funcionamento poderia ser um meio para Moscou recuperar a influência global que perdera em meio ao caos da queda da URSS.
Ao longo da década seguinte, Putin colocou essa revigorada e expandida política energética em prática ao mesmo tempo em que eliminava os entraves domésticos ao seu pleno funcionamento. O boom das commodities dos anos 2000 gerou a demanda e o influxo de capital necessário para colocar a máquina extrativa russa a todo vapor, enquanto o Estado russo, agora fortalecido institucionalmente pelas reformas de Putin, reassumiu seu controle nacionalizando a maioria das empresas e domesticando os oligarcas que detinham as restantes.
Atualmente, o governo russo tem o monopólio do setor de gás e de transporte dutoviário por meio das estatais Gazprom e Transneft, respectivamente, enquanto o óleo permanece dividido entre a estatal Rosneft e empresas privadas aliadas ao Kremlin, como a Lukoil, a Novatec e a Surgutneftegas.
A venda em larga escala de hidrocarbonetos se materializou por meio da expansão e construção de gigantescas redes de gasodutos e oleodutos que hoje se emaranham por toda a Europa. Além do Druzhba, estão em funcionamento os dutos Nord Stream, Severnya’ Sirnia, Sistema Baltico I e II, Yamal-Europa e Blue Stream, que suprem a Europa com cerca de 40% de seu gás e 30% de seu petróleo. Essa dependência é particularmente acentuada nos países do leste, como Letónia, Lituânia, Bulgária, Ucrânia, Grécia, Áustria, Suécia, Finlândia, Hungria e Polônia, nos quais a porcentagem do óleo e gás russo varia entre 65% a 100% do consumo total desses produtos.
A tradução dessa dependência em poder diplomático toma muitas formas, podendo se materializar tanto na forma de incentivos quanto de coerções. Um bom exemplo da primeira é a Bielorrúsia, cujo regime aliado de Moscou recebe seus hidrocarbonetos com preços abaixo do mercado como uma forma de manter a boa vontade do regime local e assim garantir a sua manutenção dentro da esfera de influência russa. Essa política de atração não afeta apenas Estados, mas também empresas. Atraídos pelos baixos preços dos produtos dos russos e pela alta lucratividade de projetos em parceria com eles, os setores energéticos de países como Polônia, Alemanha e Ucrânia acabaram por se tornar lobbies pró-russos dentro da economia desses países, o que garante a Moscou um importante pé dentro da política interna de seus clientes.
O uso coercitivo, muito mais direto, fica muito claro durante os exemplos das crises diplomáticas com a Ucrânia em 2004 e 2014 e com a Geórgia em 2009, nas quais os russos cortaram ou ameaçaram cortar o fornecimento de óleo e gás como forma de exercer pressão diplomática. Confrontados com a perspectiva de um colapso econômico total, os governos locais são forçados a chegar a um acordo ou ao menos contemporizar com os russos. Pode-se afirmar que a relutância de governos europeus ocidentais em tomar medidas diplomáticas mais duras contra Moscou, bem como o status quo que mantém Kiev e Tbilisi atrelados à Rússia mesmo após guerras contra ela advém de sua dependência em matéria de energia.
Recentemente, a Rússia vem expandindo suas raízes energéticas para além da Europa oriental e ocidental. A primeira tentativa russa de criar um grande duto conectando-a com os países do Balkans, o South Stream, fracassou frente às objeções da União Europeia e ao lobby de uma Turquia agressivamente anti-russa. Os russos retaliaram torpedeando o projeto rival, o gasoduto Nabucco, que conectaria a Europa ao Oriente Médio, forçando os europeus a se contentarem com um reduzido Trans-Anatólio (TANAP) ligando-os ao Azerbaijão.
Agora, com a reaproximação diplomática entre Rússia e Turquia no pós-2016, o ressurgimento de rotas para os Balkans voltou a ser uma realidade, fato evidenciado em 2020 pela inauguração do Turk Stream, conectando o gás russo à própria Istambul. Ao mesmo tempo, a cada vez mais próxima colaboração econômica entre Rússia e China se materializou com a criação do Poder da Sibéria em 2019, adicionando assim o vasto mercado chines à lista de clientes russa.
Na Ásia central, tradicional zona de influência russa, o controle dos dutos funciona de modo inverso: os países da região possuem vastas reservas de hidrocarbonetos, contudo, dada a sua localização isolada, são forçados a depender dos dutos russos para escoar sua produção rumo ao Ocidente. Uma interrupção desse fornecimento teria consequências sérias, como nos mostra o exemplo do Turcomenistão que, tendo rompido o acordo de entrega com Moscou em 2016, foi forçado a restabelecê-lo frente às enormes perdas de arrecadação com as vendas.
Ainda que a longo prazo a estratégia russa seja ameaçada pela descarbonização, no curto e médio prazo ela na verdade se beneficiará dela. Na China, o plano do governo para substituir o carvão como fonte primária de energia prevê um aumento enorme da demanda de gás natural, o que apresenta grandes oportunidades para os russos, que já vem planejando um segundo e ainda maior duto a partir da rota de Altai.
Na Europa, apesar dos esforços para expandir a geração de energia limpa e reduzir a dependência dos russos a partir da compra de óleo e gás do Catar, da Noruega e do Mar do Norte, a demanda por hidrocarbonetos, até pelo menos a metade do século, está prevista para continuar grande o bastante para tornar impensável aos líderes da UE uma ruptura de seu relacionamento energético com os russos. Prova disso é que, atualmente, mesmo em meio a todo o atrito diplomático entre Bruxelas e Moscou, os europeus concordaram com a construção de um novo gasoduto, o Nord Stream II, comprovando assim o sucesso do uso da energia como détente diplomática pelo Kremlin.
Hoje, os maiores desafios da indústria hidrocarbônica russa são explorar as vastas jazidas de óleo e gás no Ártico, na Sibéria e no Extremo Oriente russo, cujas posições e clima requerem um impressionante esforço logístico, e recuperar todo o espaço perdido no mercado de exportação de gás natural a partir do modal de GNL (liquefeito para exportação por navio e depois revaporizado no destino), o qual, dada a dependência russa do modelo de dutos, acabou resultando na perda de espaço nessa nova modalidade para países como o Catar.
A busca pelo controle das reservas e dos preços
Óleo e gás são setores nos quais dispor de uma grande produção por si só não basta. É também necessário um certo controle sobre preços e mercados globais a fim de garantir que os produtos se mantenham num patamar mínimo de lucratividade, mas que, ao mesmo tempo, não se tornem caros demais a ponto do país perder sua fatia de mercado para a concorrência. Esse malabarismo econômico exige uma estratégia de colaboração multilateral que deve envolver os demais produtores e que, no caso russo, se dá de duas maneiras.
A primeira é por meio da OPEP +, uma iniciativa multinacional de controle de preços na qual 10 países não-membros da organização concordaram em colaborar com eles para estabilizar o mercado mundial de petróleo. Lançado em 2016 por intermédio de um acordo entre a Rússia e Arábia Saudita, o acordo foi motivado pelo colapso de preços do mercado hidrocarbônico mundial que se sucedeu à crise econômica de 2008 e acabou evoluindo para um compromisso russo-saudita de trabalhar em conjunto para regular o setor. Uma vez que Riadh e Moscou concentram mais de 40% de todas as exportações mundiais de óleo e gás, logo ficou claro que ambos sozinhos poderiam ditar o mercado global.
O acordo está longe de ser muito estável, até porque russos e sauditas têm prioridades diversas neste setor: os primeiros tendem a preferir preços mais baixos a fim de dominar fatias de mercado maiores de seus clientes, enquanto os segundos preferem priorizar um retorno mais lucrativo. Uma divergência séria na estratégia a ser seguida pode ter graves consequências, como nos evidencia a guerra de preços de 2020. Pressionados pelos russos para aumentar a extração e abaixar o preço, os sauditas reagiram com uma superprodução a fim de despencar os preços e voltar para o acordo original. Após dois meses de negociações, ambos concordaram em fazer cortes, deixando para trás um terrível impacto nas bolsas de valores do mundo todo.
Contudo, seria ingênuo dizer que o acordo é um fracasso, pois independente de estarem colaborando ou brigando, o fato é que russos e sauditas conseguiram legitimar sua relação como o principal fator motivador do mercado mundial de hidrocarbonetos, o que reforça sua posição tanto em relação a seus clientes quanto aos demais produtores; e mesmo os atritos tem sua utilidade. Afinal, no jogo de muitos níveis que é a política do petróleo, uma ruptura temporária entre Riadh e Moscou, embora tenha um prejuízo a curto prazo para ambos, também serve para prejudicar muito mais todos os demais concorrentes.
Numa lógica de monopólio, o choque pode ser absorvido pelo dois grandes mas não pelos demais, e a prova disso é a produção norte-americana. Terceiro maior produtor mundial de óleo e gás, os EUA estavam começando a roubar espaço dos russos e sauditas no mercado mundial, mas tinham a desvantagem de possuir uma produção baseada na extração de xisto e, portanto, mais cara e mais sujeita a variações de preço. A breve guerra petrolífera de 2020 teve o efeito colateral de frear a entrada dos norte-americanos no mercado mundial, o que favorece tanto o Kremlin quanto a Casa de Al-Saud. Além disso, se levarmos em conta o elemento da descarbonização, a queda no consumo mundial de petróleo vai espremer os pequenos produtores e fortalecer ainda mais a posição dos dois atores dominantes.
No que tange a balança de poder interna da aliança, ela parece tender cada vez mais para o lado russo. Enquanto a posição geoestratégica dos sauditas gera insegurança sobre sua habilidade de continuar entregando seus produtos em meio a possibilidade de fechamento da rota marítima do Golfo Pérsico ou, de modo ainda mais preocupante, de seu relativamente frágil aparato militar, totalmente dependente da proteção dos EUA, não ser capaz de proteger suas instalações de um ataque estrangeiro (uma possibilidade real, conforme demonstrado pelos constantes ataques de drones dos rebeldes iemenitas à refinarias sauditas), os russos, favorecidos por sua posição geográfica, sua força militar e seu sistema de distribuição a base de dutos, se encontram numa posição de vendedores mais seguros a longo prazo.
A segunda maneira pela qual Moscou planeja aumentar sua primazia sobre o mercado mundial de energia é por meio do controle sobre jazidas hidrocarbônicas de outros países. A ofensiva diplomática russa rumo ao Oriente Médio e a África parece estar sincronizada com o objetivo de obter ganhos energéticos: o apoio russo ao regime de Bashar-Al-Assad na Síria foi recompensado com um acordo concedendo ao Kremlin exclusividade na extração do óleo e gás do país; na Líbia, no Sudão e em Moçambique, as operações dos mercenários russos do Grupo Wagner são acompanhados por lucrativos contratos de extração hidrocarbônica; na Venezuela, empresas russas adquiriram substanciais fatias das gigantescas reservas do país, na esteira do apoio vital que o governo russo presta ao regime de Nicolás Maduro. Todos esses recursos constituem cartas que tornam ainda mais poderosa a mão de Moscou na hora de impor sua predominância no cenário energético mundial.
Átomos, baterias e hidrogênio
Os hidrocarbonetos não são a única área do setor energético o qual o governo russo planeja utilizar como recurso econômico e diplomático. Proprietário da Rosatom, uma das maiores operadoras mundiais de energia nuclear, com mais de 11 reatores, bem como a única frota de quebra-gelo nucleares e a única usina nuclear flutuante do mundo, o Kremlin vem, desde 2017, buscando exportar seu know-how na forma de contratos para a construção de usinas atômicas em países emergentes. Até agora, já foram assinados acordos com Turquia, Tunísia, Argélia, Egito, China, Índia, Finlândia, Bolívia, Hungria, Camboja e Bangladesh, num total de mais de 140 bilhões de dólares em contratos ao longo da década de 2010.
Ainda mais impressionantes são os planos do Kremlin para ingressar no embrionário, mas cada vez mais expressivo, mercado de hidrogênio. Cientes de que apenas a energia fóssil não será suficiente para garantir as finanças do Kremlin na era da descarbonização, o governo russo lançou, em 2020, um roadmap estabelecendo uma estratégia nacional para fomentar e desenvolver o setor de hidrogênio, cujas possibilidades de aplicação, principalmente na área automobilística, com o barateamento e a popularização das células combustíveis para carros.
A estratégia se baseia em três eixos, com três empresas russas buscando o desenvolvimento de um jeito de produzir hidrogênio a partir de um método diferente, tendo como base as atuais fontes de energia do país. Enquanto a Rosatom está focando na geração de “hidrogênio amarelo” por meio da eletrólise da energia nuclear e a Novatek busca destilar “hidrogênio azul” a partir da reforma a vapor do gás natural, a Gazprom vem pesquisando a utilização de pirólise de metano para produzir “hidrogênio cinza”, também a partir do gás.
Existe também a possibilidade de produção de “hidrogênio verde” a partir de fontes sustentáveis de energia, mas até agora, elas vêm recebendo prioridade secundária. Com parcerias comerciais já em vigor com o Japão e a Alemanha, a Rússia busca adentrar a segunda metade do século como a líder mundial no mercado de hidrogênio.
No que tange às energias renováveis, atualmente, o governo russo, na contramão da tendência mundial, demonstrou pouco interesse na área, com exceção da hidroenergia. Ainda assim, não deve ser subestimado seu potencial nesse setor. A Rússia possui boas condições naturais para um destrave futuro de fontes solares e eólicas de energia e, nos últimos meses, o Kremlin vem sinalizando sua intenção de ao menos experimentar com tecnologias verdes. O principal exemplo disso é o recente lançamento de uma iniciativa de crédito de carbono a partir do qual, por meio de uma plataforma digital baseada em dados coletados via satélite, o governo russo planeja monetizar as florestas de seu Extremo Oriente transformando-as num vasto hub de captura de CO2.
Considerando que a área ocupada possui duas vezes o tamanho da Índia, o projeto tem potencial de balancear as enormes emissões de gases russos e ainda gerar renda na forma de créditos verdes. Outros exemplos de que um rumo mais verde já vem entrando no radar de Moscou incluem o plano de construir uma usina de energia das marés na baía de Penzhin e uma parceria entre a Shell e a Gazprom para produzir gás natural neutro em carbono (ou seja, financiado com a redução de emissão de carbono em demais áreas).
Referências bibliográficas:
DIETL, Gulshan. Russia: an energy superpower?, 2016.
GODZIMIRSKI, Jakub. Russian Energy in a Changing World What is the Outlook for the Hydrocarbons, 2013.
GUSTAFSON, Thane. The Future of Russia as an Energy Superpower, 2017.
HILL, Fiona. Russia: The 21st Century’s Energy Superpower?, 2002.
TYNKKYNEN, Vali Pekka. The Energy of Russia Hydrocarbon Culture and Climate Change, 2019.