Contexto
Myanmar é um país do Sul da Ásia, localizado entre a índia, Tailândia, Laos, Bangladesh e ainda ligando um pouco de seu território ao Oceano Índico pelo lado oeste. Possui uma área total de 679.000 km², o que torna o país como o maior do sudeste da Ásia continental. O país também é conhecido como Burma (ou Birmânia), nome determinado pelos colonizadores britânicos após a anexação do país com a colônia da indiana em 1824. Myanmar conquistou a independência apenas em 1948, após mais de cem anos de colonização, fato que contribuiu em grandes escalas para os atuais conflitos militares e democráticos de controle do país (TAYLOR, 2009). Para entendermos um pouco mais sobre como ocorreu a independência do país asiatico, que hoje, 04 de janeiro, completa 73 anos, precisamos voltar um pouco nos anos de existência de Myanmar e analisar sua história.
História
Myanmar, atualmente, é formado por cerca de 130 etnias, que por sua vez são divididas em oito grupos reconhecidos como as “grandes raças étnicas nacionais”. Estes grupos, compostos pelos Bamar, Kachin, Kayin, Chin, Kayah, Shan, Rakhine e Mo, se dividem em mais subgrupos cada um. Desses, a maioria da população, cerca de 68%, é composta pela etnia Bamar, sendo esse o grupo dominante, descendentes dos sino-tibetanos, seguidores da religião Budismo Theravada e ocupantes da maior parte do centro do país. As etnias minoritárias ficam espalhadas aos arredores do país, como por exemplo os Shan, etnia próxima dos thais que por sua vez recebem esse nome por se localizarem na fronteira com a Tailândia, e os Karen, grupo que teve seu início de mobilização ainda sob o domínio britânico, que se localizam ao sudeste de Myanmar (TAYLOR, 2009).
O país também possui pequenos grupos de Mons, Palaungs, Was, Indianos e Chineses, e por fim os Rohingyas, são a minoria muçulmana do país e um dos grupos mais perseguidos no país devido a esta crença religiosa, além disso, são atualmente o epicentro de uma das piores crises humanitárias já vivenciadas no país. Essa vasta diversidade étnica presente no país é compreendida a partir da sua evolução na história, e principalmente com a colonização, onde diversos grupos foram forçados a conviver juntos, ainda que fossem rivais.
Há cerca de 2 mil anos atrás, a etnia Pyu passou a ocupar as margens do rio Irawadi, num avanço contínuo até a total composição do território atual de Myanmar. Ainda no começo de sua formação, o país passa a receber forte influência budista após a invasão dos sino-mongóis. Porém, no século seguinte os birmaneses conseguiram se libertar da ocupação e passaram a formar um forte e estruturado reino, pautado na evolução de Pagan, capital do país fundada em 849. Já recompostos, passam a capital do país para Taungoo e unificam o país novamente após conquistarem os mon, mantendo a hegemonia total dos birmaneses intacta até 1752 (TAYLOR, 2009). Durante todo esse tempo diversos outros combates entre reinos e etnias ocorreram na região, foram cessados apenas após o controle total criado pela dinastia Alaugpaya, que conseguiu expandir o território ainda mais para o oeste. A crescente expansão territorial passou a criar um alerta aos interesses britânicos no golfo de Bengala, o que causou três guerras na região (ocorridas em 1824, 1826 e 1852), e depois de 1885 todo o território se submeteu aos britânicos em sua unificação com a colônia indiana. A partir do controle britânico a região passou a ser chamada de Burma, contando também com uma vasta migração de indianos ao país, esses por sua vez buscavam oportunidades de emprego e a chance de uma nova vida. Durante a colonização, houveram episódios de fomentação de disputas éticas partindo dos colonos, como por exemplo ao favorecer determinados povos e marginalizar outros, podendo ser um dos pontos de partida para disputas futuras (TAYLOR, 2009).
Durante a Segunda Guerra Mundial, Myanmar voltou a se dividir em regiões com opiniões divergentes, onde o Partido Revolucionário do Povo almejava conquistar o apoio dos japoneses para que a metrópole do país fosse derrotada, enquanto as demais partes políticas se mantinham na ideia de continuar com o apoio dos ingleses para que não houvesse infiltração de influência facista no país. E mesmo que a vertente em apoio aos ingleses tenha sido a vencedora, o Partido Revolucionário não recuou totalmente e se aliou ao Exército da Independência Birmana, que lutava pelo fim do controle inglês em Myanmar, e a partir dessa união o exército japonês encontrou forças e oportunidades para ocupar o sul do país através de Rangoon. Depois anos depois o interesse estratégico nipônico pelo país foi minado ao ponto do Japão os considerar independentes, porém ainda assim mantinham grande influência na política do país. Ainda durante o período da Segunda Guerra Mundial, o movimento pela libertação total do país ganhou força, criando diversos conflitos e protestos que levaram à independência em 1948 (TAYLOR, 2009).
O processo de independência da Birmânia (Burma)
Com uma população insatisfeita com a colonização britânica, em grande parte pela imigrção indiana, que chegou a ter a presença de cerca de 200 mil indianos na capital Rangoon, 100 mil a mais do que os próprios birmaneses. Outra insatisfação da população foi a mudança social trazida pela colonização, onde os ingleses ocupavam o topo da pirâmide social, sendo estes empresários e comandantes de alta escala do governo, seguido dos indianos, reconhecidos como burocratas e comerciantes, e aos nativos do território eram relegados a trabalhos mais baixos, como serventes, os fazendo “escravos” de seu próprio território e os colocando na base da pirâmide social. Algo que também afetou muito foi a relação com a religião, com o advento do crsitianismo por meio de missões cristãs britânicas, algumas etnias da região foram catequizadas enfraquecendo o budismo – religião predominante até então – e deixando com que o budismo fosse considerado uma religião pagã e inferior a religião dos colonizadores, diminuindo o status social daqueles que a seguiam. (RIBEIRO, 2012)
A relação do budismo com a sociedade birmanesa, nessa época, tem duas características, aquela que advinda da colonização, há a total rejeição dos modelos budistas de sociedade, e a de resistência e contraposição de poder, feita pelos líderes e monges budistas e pelos monastérios, representando uma “ameaça descentralizadora ao governo”. E em 1906 foi criado o YMBA – associação budista de jovens, que mais tarde evolui para o General Council of Burmese Associations (GCBA) que até 1930 foi o principal grupo político birmanês , onde tinha participação dos principais monges budistas e a elite pró-império britânico, mas que com a insatisfação da população, a crise econômica de 1929 e desentendimentos internos, dando abertura para a criação da Associação dos Birmaneses (DoBamar Asiayone), em 1930, liderando a insurgência nacionalista da Burma. (RIBEIRO, 2012)
Com o DoBamar Asiayone, surgia nomes como Aung San, pai da revolução e independência birmanêsa, e foi lançado ainda em 1930 o 1º manifesto, o Reform Series Nº 1, do qual lançou o lema da associação, que declarava: “Bamarpyithi Dopyi (Burma é nosso país), Barnarsarthi Dosar (A literatura birmanesa é a nossa literatura), Bamarsagarthi Dosagar (A língua birmanesa é a nossa língua), Dopyiko Chitpar (Ame nosso país), Dosarko Chiihmyintpar (Estime nossa literatura) e Dosagarko Laysarpar (Respeite nossa língua)” (MIN, 2009, p. 109). O lema além de ser uma tentativa de reconquistar o território e identidade como birmaneses, também era uma lembrança da situação que o povo se encontrava naquela época, vistos como inferiores e estranhos à sua própria terra, assim, o documento instiga muito o pensamento de uma Birmânia para os Birmaneses. (MIN, 2009)
Uma parte significativa da história do nacionalismo birmanes é ilustrado no prefixo utilizado pelos jovens nacionalistas da época, o Thakin – traduzindo para algo como lord ou senhor – remetendo a época da dinastia Bagan e os separando dos antigos nacionalistas que utilizavam os prefixos Muang ou Ko. O uso do prefixo, também era uma forma de relembrar a população de que eles eram senhores, fazendo uma ligação aos servidores públicos (britânicos) como se estivessem ali para servir os Thakins (os lordes), que era a população birmanesa.(MIN,2009)
Mesmo com a criação e o uso do prefixo Thakin, apenas no final dos anos 1930 foi que a Associação dos Birmaneses começou a ter grande apoio da população e maior abrangência quanto ao território (MIN,2009). A década de 1930 foi uma década agitada para os birmaneses e o governo britânico onde de 1930 a 1932, houve a revolta dos camponeses, em 1932, sob pressão dos grupos nacionalistas há a promulgação de uma nova constituição, e em 1937 é separada a Birmânia do então representante britânico. Durante a revolta dos camponeses surge um importante ator no cenário reformista da época, U Saw, que foi eleito primeiro-ministro em 1941, declarando em 1940 seu apoio aos aliados durante a Segunda Guerra Mundial. (RIBEIRO, 2012)
Aung San, considerado atualmente pai da Birmânia moderna, pela sua contribuição na independência do país, cria em 1939 o Partido Comunista da Burma (CPB), que junto ao antigo chefe de Estado Ba Maw e os Thakins forma financiados pelos japoneses como forma de barrar o apoio chinês na Birmânia. Aung Sang vai ser assassinado em 1947 expondo a instabilidade dos Thakins e das vertentes dentro da Associação dos Birmaneses (RIBEIRO, 2012). É diante dessa instabilidade política que em 4 de janeiro de 1948 é declarada a independência da Birmânia (Burma) do Império Britânico constituindo a União da Burma como protetorado do Império Japonês, com Sao Shwe Thaik à frente do novo Estado como primeiro Presidente e Thakin Nu como Primeiro Ministro. (KIPGEN, 2016)
De Burma a Myanmar
Essa instabilidade política perdurou durante os anos depois da independência da democracia parlamentar do Estado da União da Birmânia, que levou ao golpe militar em março de 1962, pelo general U Ne Win e o Partido do Programa Socialista da Birmânia (BSPP), que comandaria o país até 1988. A presença militar no Estado era plena, principalmente depois de construída e anunciada a ideologia de Ne Win chamada de “caminho Birmanês para o Socialismo” que tinha características de autonomia da economia, por meio de estatização da indústria, também havia o isolamento do país economicamente e para turismo. A ideologia era muito baseada na religião, o budismo, mas tinha sérias ligações também com a numerologia, influenciando inclusive a produção de cédulas, onde em 1987, o ditador retirou as cédulas da moeda, conhecida como Quiate (Kyat), que não eram divisíveis por 9, sobrando apenas as cédulas de 45 e 90 Quiates. (AL-FAHAD, 2020)
Tal mudança causou um desastre na economia do país fazendo o país que era um dos maiores exportadores de arroz do mundo no período, a ser um dos países mais pobres do mundo, o que ocasionou nos protestos da revolta 8888, que iniciou em março de 1988, uma revolta da população, principalmente de jovens, contra a repressão econômica, política e a violência do exército contra a população da então ditadura socialista, os protestantes reivindicavam o fim da ditadura, do sistema de um único partido e a favor de uma democracia. Em julho U Ne Win é retirado do poder, e assume o General U Sein Lwin, ainda pró-governo, e como tentativa de controlar os protestos é implementada uma Lei Marcial que resulta em uma repressão ainda mais grave, mas que não é capaz de parar os protestos e reivindicações da população insatisfeita.(AL-FAHAD, 2020)
Em Agosto de 1988, U Sein Lwin é retirado do poder, assumindo Dr. Muang Muang, ainda sob o comando do Partido do Programa Socialista da Birmânia. Durante esse período teve a ascensão como líder do povo de Aung San Suu Kyi, filha do antigo líder da revolução da independência Aung San, sua presença e postura em apoiar o povo, dava ainda mais força às reivindicações por democracia no país. Em 12 de setembro, o governo parece ceder às reivindicações da população e declara que irá celebrar eleições justas e livres baseadas no sistema de multi-partidos, com isso é criado The State Law and Order Restoration Council (SLORC), com o pretexto de retomar a ordem no país e “devolver ao exército seu verdadeiro posto” o de defensor da União de Burma, mas em 19 de setembro um novo golpe de estado foi dado por essa junta militar, onde e uma semana milhares de pessoas foram presas, assassinadas e torturadas; foi definido um toque de recolher e proibido a reunião de mais de cinco pessoas em um só local. A contituição de 1974 foi abolida e o partido socialista foi dissolvido, e o novo regime que assumia a religião budista começou a perseguir e reprimir os Rohingya, um grupo étnico islâmico. (AL-FAHAD, 2020)
Em 1989, a junta militar trocou oficialmente o nome do país de União da Burma (Birmânia) para República da União de Myanmar, ainda que até hoje muitas pessoas não reconheçam a nova identificação, sendo considerada uma forma de protesto contra o governo da junta militar.
Eleições e protestos
Com a promessa de se haver novas eleições multipartidárias no país mantida, ainda em 1989, cerca de 200 partidos foram registrados, concebendo os mais significativos o Partido da Unidade Nacional (NUP), uma reencarnação do BSPP, a Liga para a Democracia e para a Paz (LDP), encabeçado pelo antigo Primeiro-Ministro U Nu e a Liga Nacional para a Democracia (NLD), fundado por Aung San Suu Kyi, Aung Gyi e Tin U, em setembro de 1988. E em 1990, ocorreram as primeiras eleições, que contra todas as previsões e tentativas militares de eleger o NUP, o NDL obteve 392 assentos parlamentares dos 447 disponíveis. A vitória do NDL não foi reconhecida pela junta militar e levando os líderes a serem enxergados como ameaça, resultando na prisão domiciliar de Aung San Suu Kyi e Tin U, até 1995, assim como a perseguição e prisão de outros membros do partido. (GUERREIRO, 2012)
Aung San Suu Kyi se tornou a cara da oposição do governo e do movimento pró-democracia, ganhando prêmios internacionais como o Prêmio Nobel da Paz em 1991, dando entrevistas, celebrando reuniões públicas contra o governo, viajando pelo país, o que resultou na prisão domiciliar dela novamente em 2000 por mais um ano e meio, quando ela foi solta com ajuda da pressão internacional, depois de um ano de sua libertação ela é de novo interceptada, dessa vez a prisão se prolongou até 2010. A líder do NDL, sempre lutou contra a violência, sendo a favor da comunicação para a resolução de diferenças, além de grande apoiadora da democracia, é ativista dos Direitos Humanos e luta contra o regime militar do Myanmar (Birmânia) até hoje (GUERREIRO, 2012).
Apesar de tudo, ex-apoiadores da ativista budista alegam que ela “fecha os olhos” para a situação da minoria muçulmana Rohingya, na qual os militares são acusados de limpeza étnica, estupro coletivo, violências e outras barbaridades. O fato de ela ignorar o que acontece a essa comunidade fez com que Aung San Suu Kyi, perdesse alguns prêmios de Direitos Humanos que conquistou e muito do apoio internacional que tinha, principalmente dos Estados Unidos.
Em 2010, com novas eleições – desta vez aprovadas pelos militares – a ditadura chega ao fim, assumindo em 2011, Thein Sein como novo presidente do Myanmar, comandando o país até 2016, propondo e cumprindo novas reformas no governo, dessa vez baseadas em processos democráticos. A história começa a complicar novamente em 2020, com as eleições e a então vitória massiva no parlamento do partido da Liga pela Democracia (NDL), nos quais os seus opositores alegam fraude, mesmo que não comprovada, e com isso, em 1º de fevereiro de 2021 é se orquestrado um novo golpe militar. Onde os meios de comunicação são cortados, opositores à junta militar são presos e Win Myint, presidente desde 2018, e Aung San Suu Kyi, agora conselheira de Estado, foram presos também, membros do NDL e ativistas.
Com um novo golpe de Estado, a população não ficou parada e demonstrou seu descontentamento, e dia 5 de fevereiro de 2021 começaram os protestos contra esse golpe e a favor da democracia, em meio a maior crise pandêmica do século, a crise do Covid-19. Os protestos, inicialmente pacíficos, se tornaram violentos com a ação dos militares e em março mais de 500 militantes tinham sido assassinados e milhares foram presos, alguns militantes foram soltos desde então, mas os protestos pela democracia não param e a situação no país, por enquanto, não tem previsão de mudança.
Referências Bibliográficas
ABREU, Bruna Marinho et al. APATRIDIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: ANÁLISE HISTÓRICA E NORMATIVA DO ÊXODO DO POVO ROHINGYA. 2020.
AL-FAHAD, Maher Chasib Hatem. POPULAR PROTESTS AND THE OUTBREAK OF THE 8888 UPRISING IN BURMA (MARCH-OCTOBER 1988). PalArch’s Journal of Archaeology of Egypt, Egito, v. 17, n. 7, 23 out. 2020 Disponível em: https://archives.palarch.nl/index.php/jae/article/view/8901. Acesso em: 18 nov. 2021.
GUERREIRO, Márcia Cordeiro. A Birmânia e a Luta pela Democracia: 1988-2010. 2012. 133 f. Dissertação (Mestrado) – Ciência Política e Relações Internacionais, Especialização em Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade de Nova Lisboa. Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/8676 . Acesso em 18 nov. 2021
KIPGEN, Nehginpao. Myanmar: a political history. Oxford: Oxford University Press, 2016. ISBN-13: 9780199466306
MIN, Zaw Soe. Emergence of the DoBamar Asiayone and the Thakins in the Myanmar Nationalist Movenlent. Bulletin Of The School Of Graduate Studies At Okayama University Of Social Sciences And Cultural Rights, Okayama, v. 27, n. 1, p. 103-121, 2009. Disponível em: http://ousar.lib.okayama-u.ac.jp/files/public/1/15053/20160527210356738847/027_103_121.pdf. Acesso em: 17 nov. 2021.
RIBEIRO, Erik Herejk. A Birmânia até 1950: desafios e legado histórico. 2012. 94 f. TCC (Graduação) – Curso de Relações Internacionais, Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/71701/000879305.pdf. Acesso em: 17 nov. 2021.
TAYLOR, Robert H. The state in Myanmar. NUS Press, 2009.