O Ártico tornou-se uma região de importância estratégica crescente no século XXI, à medida que o derretimento do gelo polar revela novas rotas marítimas e vastos depósitos de minerais cruciais para as novas tecnologias, como a produção de veículos elétricos. Este cenário desafiador atrai não apenas as atenções dos países do Círculo Polar Ártico, mas também de potências como China, Rússia e Estados Unidos, que veem na região uma oportunidade de consolidar poder geopolítico e econômico.
Sumário
Neste contexto, a Rússia reforçou sua presença militar no Ártico, com bases aéreas e navais, além de investimentos em capacidades nucleares, enquanto a China avança sua estratégia de Rota da Seda Polar, ampliando influência econômica em países do Ártico por meio de parcerias em mineração e infraestrutura. Diante dessa concorrência, Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, defendeu um discurso que mistura segurança nacional, expansão econômica e coerção política, propondo medidas como a aquisição da Groenlândia e até mesmo sugerindo a possibilidade de integrar o Canadá aos EUA.
Trump justificou suas intenções com base na necessidade de proteger o mundo livre, argumentando que o controle americano sobre a Groenlândia é vital para contrabalançar as ações de seus principais rivais. Contudo, sua abordagem e sua disposição em considerar medidas extremas, como o uso de força econômica e a redefinição de fronteiras regionais, têm gerado preocupação entre aliados, levantando dúvidas sobre as consequências diplomáticas e geopolíticas de tais posturas.
#Greenland #Trump has released a video of Greenlanders asking him to buy the island!
— Boris Alexander Beissner (@boris_beissner) January 10, 2025
The video was filmed during Trump's son's recent trip to Greenland. Locals wearing "Make America Great Again" caps say they love the future US president and ask him to buy the island. pic.twitter.com/y3vwUcc0uO
Por que Donald Trump quer a Groenlândia?
As recentes declarações reacenderam discussões sobre o interesse estratégico americano na Groenlândia e no Canal do Panamá. Tais comentários, embora frequentemente polêmicos, refletem uma abordagem pragmática e assertiva da política externa americana, moldada por interesses econômicos, de segurança nacional e pela competição geopolítica. Contudo, também levantam questionamentos sobre as implicações diplomáticas e legais dessa postura.
Em uma recente coletiva de imprensa, Trump justificou o interesse pela Groenlândia em termos de segurança nacional:
“Precisamos da Groenlândia por razões de segurança nacional. Tenho ouvido isso há muito tempo, muito antes de eu concorrer. As pessoas nem sabem se a Dinamarca tem qualquer direito legal sobre ela, mas, se tiver, deveria desistir porque precisamos dela para proteger o mundo livre.”
Sobre o Canal do Panamá e a relação com o Canadá, ele enfatizou o uso de força econômica:
“Não estamos falando de força militar. Estamos falando de força econômica. O Canadá e os Estados Unidos… seria algo incrível acabar com essa linha artificialmente desenhada.”
Ele também anunciou um rebranding nacionalista para o Golfo do México:
“Vamos mudar o nome do Golfo do México para o Golfo da América. É um nome bonito e cobre muito território.”
Essas declarações ilustram uma visão expansionista enraizada em considerações geopolíticas e econômicas, que ressoam com uma base eleitoral acostumada à retórica de “América em primeiro lugar”.
NEW: Greenland Prime Minister Mute Egede says he is ready to speak with Donald Trump as he calls for independence from Denmark.
— Collin Rugg (@CollinRugg) January 11, 2025
Egede said his people didn’t want to be Americans but said it was ultimately up to them to decide their future.
“We are ready to talk [with… pic.twitter.com/2UuvX8m6Jg
Por que a Groenlândia é importante?
A Groenlândia é a maior ilha do mundo e um território autônomo da Dinamarca. Sua relevância estratégica reside em três fatores principais:
Situada no Ártico, entre a América do Norte e a Eurásia, a Groenlândia é crucial para monitoramento de mísseis e defesa continental. Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA operam a Base Espacial Pituffik, que desempenha um papel essencial na vigilância e defesa contra ameaças intercontinentais.
“Se a Rússia enviar mísseis em direção aos EUA, a rota mais curta seria via o Polo Norte e a Groenlândia,” afirma Marc Jacobsen, especialista em defesa dinamarquesa.
O derretimento das calotas polares está expondo vastos depósitos de minerais, incluindo terras raras, essenciais para tecnologias como baterias, celulares e turbinas eólicas. A Groenlândia, com potencial inexplorado, atrai investidores, e os EUA veem isso como uma oportunidade para reduzir sua dependência da China nesses setores estratégicos.
O aumento da militarização no Ártico, impulsionado por Rússia e China, exige maior presença americana para manter a superioridade no Hemisfério Norte. Para Washington, garantir acesso e influência sobre a Groenlândia é fundamental para proteger as rotas marítimas e consolidar sua hegemonia regional.
Um Padrão Histórico e Riscos Diplomáticos
O interesse dos Estados Unidos pela Groenlândia remonta a uma tradição histórica de expansão territorial e segurança estratégica. Desde o século XIX, a ilha tem sido vista como uma peça-chave no tabuleiro geopolítico americano. Entretanto, as recentes declarações de Donald Trump introduzem uma nova dinâmica a esse debate, combinando retórica com pressões econômicas e políticas, o que levanta preocupações sobre os limites éticos e diplomáticos da política externa dos EUA.
Em 1867, pouco após a compra do Alasca, o então secretário de Estado William H. Seward demonstrou interesse em adquirir a Groenlândia e a Islândia, visualizando as ilhas como expansões estratégicas que consolidariam a influência americana no Atlântico Norte. Apesar de sua visão, a falta de interesse dinamarquês impediu qualquer avanço.
O episódio mais significativo ocorreu em 1946, quando os EUA, sob a presidência de Harry Truman, ofereceram US$ 100 milhões (cerca de US$ 1,2 bilhão em valores atuais) pela Groenlândia, justificando a proposta com base em preocupações de segurança nacional no contexto da Guerra Fria. A proposta foi prontamente rejeitada pela Dinamarca, que considerava a ilha essencial para sua soberania e estratégia de defesa.
Trump e a Nova Estratégia Coercitiva
O interesse de Trump pela Groenlândia, que ganhou destaque em 2019 e reapareceu em 2025, difere de seus predecessores ao adotar uma abordagem mais explícita e coercitiva. Trump busca combinar pressões econômicas e políticas em vez de negociações diplomáticas tradicionais. Sua retórica sugere que, em sua visão, a aquisição ou controle estratégico da Groenlândia não é apenas uma questão de oportunidade, mas uma necessidade para garantir a hegemonia americana.
Essa abordagem, no entanto, tem gerado comparações com a lógica expansionista de potências como a Rússia. Benjamin Talis, do German Marshall Fund, observou:
“A retórica de Trump sobre a Groenlândia lembra a lógica imperialista russa. Isso compromete a liderança moral dos EUA no cenário global.”
A comparação é especialmente relevante no contexto do conflito na Ucrânia, onde os EUA lideraram a condenação internacional à invasão russa. Trump, ao sugerir a possibilidade de usar coerção econômica ou militar para obter a Groenlândia, parece contradizer o próprio discurso americano de respeito à soberania nacional.
Riscos Diplomáticos e Credibilidade
A insistência de Trump em tratar a Groenlândia como uma mercadoria — uma peça a ser adquirida para fortalecer os interesses americanos — enfraquece a imagem dos EUA como defensor da autodeterminação dos povos. A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, rejeitou categoricamente a ideia, afirmando:
“A Groenlândia pertence aos groenlandeses, e a ilha não está à venda.”
Além disso, líderes e parlamentares groenlandeses, comprometidos com a autonomia e os direitos do povo inuit, consideraram as declarações de Trump desrespeitosas. Aleqa Hammond, ex-primeira-ministra da Groenlândia, enfatizou:
“Trump está nos tratando como um bem que pode ser comprado. Ele não está falando com a Groenlândia, mas com a Dinamarca, ignorando completamente nossa voz.”
Esse tipo de postura não apenas aliena aliados históricos, como também enfraquece os esforços americanos para promover uma ordem internacional baseada em regras e respeito mútuo. Ao priorizar a força econômica e ameaças veladas, Trump corre o risco de legitimar práticas semelhantes por parte de rivais, como China e Rússia.
Implicações para o Ártico e o Papel dos EUA
A Groenlândia, com suas vastas reservas de minerais e posição estratégica, é cada vez mais central na disputa por influência no Ártico. O derretimento do gelo e a crescente militarização da região por parte de Rússia e China tornam a presença americana essencial para a estabilidade. No entanto, para sustentar essa presença, os EUA precisarão equilibrar poder com diplomacia. Ações coercitivas e retórica expansionista podem afastar parceiros-chave, como Dinamarca e Groenlândia, prejudicando os próprios interesses americanos.
Além disso, a abordagem de Trump reforça narrativas de que os EUA estão abandonando o multilateralismo em favor de um unilateralismo agressivo. Essa percepção pode dificultar a construção de coalizões no futuro, especialmente em questões sensíveis como mudanças climáticas, disputas territoriais e comércio internacional.
Conclusão
O interesse americano pela Groenlândia reflete uma longa história de aspirações territoriais e estratégicas. No entanto, a abordagem de Donald Trump, marcada por retórica coercitiva e foco na força econômica, ameaça comprometer a credibilidade dos Estados Unidos como líder do mundo ocidental. Em vez de consolidar sua posição no Ártico, suas declarações e intenções podem isolar Washington, enfraquecer alianças fundamentais e aumentar as tensões com parceiros tradicionais, como Dinamarca e Canadá.
Para garantir seus interesses de forma sustentável, os EUA precisam reforçar a cooperação com aliados e adotar uma postura que respeite a soberania dos povos locais, como os groenlandeses. Uma estratégia colaborativa não apenas fortalece laços diplomáticos, mas também impede que rivais estratégicos, como Rússia e China, aproveitem divisões entre aliados ocidentais para expandir sua influência no Ártico.
Além disso, o afastamento de parceiros históricos pode minar a liderança americana no mundo ocidental, reduzindo sua capacidade de coordenar respostas conjuntas a desafios internacionais. A insistência em ações unilaterais ou na retórica expansionista corre o risco de alimentar tensões geopolíticas e legitimar práticas coercitivas por parte de potências rivais.
O futuro da presença americana no Ártico e sua posição de liderança internacional dependerão de sua habilidade em equilibrar ambições estratégicas com o compromisso de respeito mútuo e cooperação internacional. Sem isso, os Estados Unidos podem comprometer não apenas sua influência regional, mas também a estabilidade internacional em um momento de crescente competição entre as grandes potências.