Considerada um dos mais importantes esforços multilaterais das Nações Unidas, a Cimeira do Milênio foi uma conferência realizada por 191 nações em setembro do ano 2000, na sede da ONU em Nova York. No seu documento final, a Declaração do Milênio, estavam presentes os tópicos que iriam engajar os Estados-membros a um futuro comum sobre a redução da pobreza extrema, o combate à injustiça e a desigualdade, a preservação do meio ambiente, entre outros. Os Objetivos do Milênio, presentes no documento, deveriam ser alcançados até 2015 e o compromisso de cada país seria observado de perto pela organização.
Hoje, mais de 20 anos depois, a Cimeira do Milênio pode ser vista como uma espécie de portfólio do sistema ONU. A sua estrutura e os seus resultados mostram tanto o potencial que a organização possui como as falhas que precisam ser corrigidas. Fato é que o documento final representou, nas palavras de Kofi A. Annan, secretário-geral na época, “a convergência de opiniões sobre os desafios com que nos vemos confrontados e com a premência do seu apelo à ação”, (ONU, 2000, p.2). Assim, a Cimeira se constitui peça chave para entender, dentre outros fatores, o papel da ONU no multilateralismo.
Contexto Internacional: críticas e desafios comuns
O século passado foi marcado por guerras, crises econômicas e mudanças sociais que acabaram produzindo as maiores instituições e organizações internacionais que o século presente utiliza. Dentre elas, a Organização das Nações Unidas destaca- se pela multiplicidade de agendas que podem ser abordadas dentro do seu sistema. Na sua estrutura, estão presentes órgãos como o Conselho de Segurança que visa a manutenção da paz e da segurança internacional e o Conselho Econômico e Social que tem a responsabilidade de coordenar os trabalhos do âmbito social e econômico dos estados-membros.
Em teoria, todos os órgãos funcionam em sintonia para proporcionar aos países signatários as bases necessárias para estabelecimento da paz e a estimulação da cooperação internacional, no entanto, a eficácia da ONU foi posta em questão várias vezes ao longo da sua criação. Com o fim da guerra fria, por volta da década de 90, esses questionamentos começam a ganhar força substancial e um crescente ceticismo quanto à eficácia da instituição se instaura. Segundo Chopra e Mason (2015), a falta de um quadro comum de desenvolvimento, o declínio do financiamento global e a tendência de desenvolvimento voltado mais para a macroeconomia fez com que as Nações Unidas regressassem em importância nas discussões sobre os bens comuns globais dando espaço para instituições como o Banco Mundial e o FMI tomar a frente nestas questões.
Ao mesmo tempo, em conferências internacionais e reuniões oficiais, diplomatas, especialistas, técnicos e representantes de várias agências da ONU e de unidades soberanas, colocavam em pauta a necessidade de cooperação sobre temas que iam para além da economia e do desenvolvimento nas bases da época.
Publicado em 1990 pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen, o Relatório de Desenvolvimento Humano mostrou que sem o investimento em pessoas não há como garantir um desenvolvimento que seja sustentável (BHANOJI, 1991). Um pouco mais adiante, em 1996, Gus Speth, chefe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento na época, propôs que as discussões sobre desenvolvimento fossem concentradas em objetivos mais demarcados e selecionados em prioridades (DOSS, 2021).
Em junho de 2000, o então secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan, apresentou na Assembléia Geral o documento “A Better World for All”, resultado do esforço de várias agências e instituições do sistema ONU. Na declaração, estavam dispostos 7 objetivos que visavam a redução da pobreza ao longo de 15 anos, bem como recomendações que os guiaram. Entretanto, como Alan Doss afirma, a iniciativa recebeu ainda várias críticas quanto à falta de foco sobre o meio ambiente, referência limitada aos direitos humanos e falta de metas para apoio financeiro (DOSS, 2021).
Finalmente, entre os dias 6 e 8 de setembro do ano 2000, foi realizada a Cimeira do Milênio, uma conferência que uniu as agendas mais diversas da governança global em objetivos e metas específicas. A Declaração do Milênio, como ficou conhecido o documento final da conferência, foi corrigido de acordo com as críticas abordadas anteriormente e alargado de acordo com as necessidades apresentadas ao longo das reuniões. Assim, a Declaração obteve ampla aceitação dos países signatários e renovou a confiança da ONU como uma organização necessária.
Conhecendo os Objetivos do Milênio
Logo no prefácio da Declaração do Milênio, Kofi Annan, destaca que ao propor a realização da Cimeira, a sua intenção era utilizar a força simbólica do milênio que se iniciaria para ir de encontro com as necessidades comuns das nações ao redor do mundo e endereça as críticas à organização mostrando que apenas as nações podem alcançar os resultados esperados (ONU, 2000). Desta forma, é importante destacar quais foram os compromissos principais acordados na conferência.
De maneira geral, as maiores contribuições da Cimeira do Milênio estão no esforço conjunto para a erradicação da pobreza, a proteção do meio ambiente, a promoção da democracia, dos direitos humanos e da boa governança, a proteção de grupos vulneráveis isto é a população civil que sofre de maneira desproporcional as consequências de catástrofes naturais, atos de genocio etc, e também responder às necessidades dos países africanos. Além disso, a Declaração visa reafirmar a ONU como instrumento eficaz e manter os esforços de paz, segurança e desarmamento.
Com relação à pobreza e ao desenvolvimento, o documento mostra preocupação com a mobilização de recursos necessários para que os países em desenvolvimento possam cumprir a agenda de sustentabilidade, destaca que é necessário reduzir a mortalidade materna em três quartos e a de crianças de até 5 anos, em dois terços em relação às taxas mundiais, e promove a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher como forma de erradicar a pobreza. Já sobre a democracia, reforça a necessidade de cumprir a Declaração do Direitos Humanos, a promoção dos direitos civis e das práticas democráticas e assegurar a liberdade dos meios de comunicação.
Com relação ao meio ambiente e aos povos vulneráveis, o documento reitera a necessidade esforços coletivos em prol do desenvolvimento sustentável, o cumprimento do antigo Protocolo de Quioto, o fim da exploração insustentável dos recursos hídricos e o livre acesso à informação sobre a sequência do genoma humano. Além disso, para os povos vulneráveis, incentiva a cooperação sobre os refugiados, e a aplicação integral da Convenção sobre os Direitos da Criança.
A Declaração do Milênio pelo prisma das Relações Internacionais
Os resultados e implicações da Declaração do Milênio, durante e após o ciclo de execução dos Objetivos do Milênio, foram interpretados por diferentes campos do conhecimento com foco em questões teóricas, metodológicas e de resultados.
No contexto das Relações Internacionais, Hulme (2007) identifica, a partir das perspectivas institucionalista (interdependência complexa) e construtivista, que a elaboração da Declaração e seus objetivos dependeu da interação de valores e interesses (mutáveis) de atores-chave e suas respectivas estratégias (mídia, reuniões formais com servidores e líderes da ONU, protestos, entre outros). Embora reconheça Estados e organizações multilaterais como os atores dominantes do debate, para o autor, por trás das deliberações houve a ação de variadas redes de organizações e indivíduos: OCDE, países do Sul Global, ONGs, movimentos sociais, setor privado.
Fukuda-Parr (2011), através do modelo de Finnemore & Sikkink, faz uma discussão crítica sobre o papel da normatividade no processo de legitimação de estratégias políticas internacionais predominantes. Para a autora, a Declaração e os ODM alcançaram um estágio de internalização de normas que os permitiu serem definidos sem muita contestação, pelos grandes atores internacionais, como as metas globais a serem perseguidas pelo desenvolvimento internacional. Nesse sentido, os ODM “redefiniram a pobreza como a satisfação das necessidades básicas, deixando para trás elementos de participação, igualdade e empoderamento, que são essenciais para o desenvolvimento e capacidades humanas e outras perspectivas centradas no homem”. Mais além, a força dos ODM como ferramenta de comunicação estaria baseada na utilização “do poder dos números para simplificar conceitos complexos como a pobreza, tornar as aspirações intangíveis concretas como dignidade e liberdade e abstrair desafios localmente embutidos em objetivos universais”.
Conceitos específicos também se tornaram objeto de debate a partir deste “ciclo do milênio”. Cimadamore (2016) ressalta que apesar de relativo sucesso de teóricos liberais, institucionalistas, marxistas, construtivistas e feministas, em apresentar alternativas aos modelos (neo)realistas, o conceito de “justiça global” se manteve, ao longo do tempo, fora das principais discussões em RI. A Declaração do Milênio e os ODM serviram, então, para abrir portas para novas abordagens sobre justiça global concentradas em aspectos econômicos e sociais deixados para trás em abordagens tradicionais das RI. Outro conceito colocado em debate foi o de “governança por metas” (HULME, 2007). Para o autor, a Declaração e os ODM serviram como ponto de partida para o atual sistema de governança da sustentabilidade global baseado em objetivos e metas como estratégia-chave.
O impacto global da Cimeira do Milênio: entre erros e acertos
Embora não tenham cumprido seus objetivos integralmente, os ODM apresentaram métricas significativas como aponta o Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ONU, 2015): declínio da extrema pobreza (de 1,9 bilhão de pessoas em 1990 para 836 milhões em 2015); redução da proporção de desnutridos em países em desenvolvimento (23.3% em 1990 para 12.9% em 2014); redução da taxa de mortalidade materna e da taxa de mortalidade entre menores de 5 anos (de 90 para 43 mortes por 1.000, entre 1990 e 2015); a taxa de matrícula em escolas primárias, nas regiões em desenvolvimento, atingiu 91% em 2015, ante 83% em 2000; entre 1990 e 2015, 2,6 bilhões de pessoas obtiveram acesso à água potável e 2,1 bilhões a saneamento básico; a assistência financeira oficial de países ricos para países em desenvolvimento aumentou 66% em termos reais entre 2000 e 2014, atingindo US 135,2 bilhões.
Não obstante os avanços, muitos foram os questionamentos e críticas levantados acerca dos processos e resultados advindos da Declaração do Milênio. Do ponto de vista metodológico, Bettelli (2021) indica o equívoco dos Objetivos em não reconhecer a natureza multidimensional da pobreza global ao não abordar fatores como guerras e instabilidade política, discriminação e desigualdade social, fatores ambientais, corrupção e ausência de Estado de Direito. Outra crítica pertinente é a de que a ambição das metas é injusta com os países mais pobres, os quais têm um caminho mais longo a percorrer e acabam por ter seus progressos minimizados (MCARTHUR e RASMUSSEN, 2018).
Da perspectiva dos resultados, duas críticas sobre a leitura dos resultados dos ODM foram bastante salientadas. A primeira indica uma distorção dos valores agregados de desenvolvimento global impulsionados pelo crescimento de China e Índia, dois grandes países em desenvolvimento cujo progresso é considerado independente dos esforços do sistema multilateral. A segunda questiona o peso dos esforços políticos globais para a obtenção dos resultados finais, argumentando que estes seriam apenas um subproduto de um crescimento econômico global independente de coordenação multilateral (MCARTHUR e RASMUSSEN, 2018).
Do ponto de vista teórico, autores críticos levantaram importantes questionamentos acerca da natureza da Declaração e dos ODM e sobre o próprio sistema global que os definiu. Para Fukuda-Parr (2011), há, nestes arranjos globais, uma ausência de ideias causais sobre como a pobreza passa a existir e persiste. Assim, a ideia promovida é apenas normativa, de que a pobreza deve ser erradicada. Neste vácuo causal, os interesses dos países desenvolvidos são legitimados por análises e premissas neoliberais, pouco questionadas, que preconizam que a pobreza pode ser erradicada apenas através de crescimento econômico e participação na economia global. Haveria dessa forma uma contradição entre a abordagem dos ODM que se concentrou na redução da pobreza com a manutenção de um modelo neoliberal de desenvolvimento que tolera violações de direitos humanos, sociais e econômicos e gera seus próprios ciclos de pobreza via crises financeiras ou políticas (CIMADAMORE, 2016).
Conclusão
Entre falhas e acertos, é inegável que a Cimeira do Milênio (e os ODM por conseguinte) representa um ponto de inflexão para o sistema internacional do século XXI e um tema de suma importância para as Relações Internacionais. Em seu cerne está o maior compromisso global para redução da pobreza já acordado (e renovado em através dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável).
Além do, até então, sem precedente número de signatários, o acordo apresentou uma natureza única no que tange aos seus meios de debate, implementação e monitoramento, servindo por 15 anos como ponto de referência para cooperação internacional para desenvolvimento. Ademais, há de se salientar seu incentivo à disseminação da ideia de que a redução da pobreza e o desenvolvimento sustentável são responsabilidades comuns mas diferenciadas e que só podem ser cumpridas se partilhadas.
Do ponto de vista teórico, o estudo da Declaração e seus desdobramentos pode contribuir para a compreensão de conceitos como justiça e governança global, ainda por vezes ignorados nas Relações Internacionais. A disciplina possui também papel preponderante na avaliação da Declaração do Milênio e dos ODM enquanto fonte de aprendizagem para novos compromissos globais como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ou o Acordo de Paris. Nesse contexto, as RI aparecem como uma necessária lente de interpretação de questões como responsabilização pública e privada; evolução de discursos políticos; concepções de desenvolvimento; metodologias de implementação e mensuração de metas e objetivos globais e a influência de regimes políticos e econômicos sobre compromissos globais.
Referências
BETTELLI, Paola. What the World Learned from Setting Development Goals. Canadá: International Institute for Sustainable Development, 2021.
BHANOJI, Rao. Human development report 1990: review and assessment. Amsterdã: Elsevier, v.19, p. 1451-1460, 1991.
CIMADAMORE, Alberto. Global justice, international relations and the Sustainable Development Goals’ quest for poverty eradication. Cambridge: Journal of International and Comparative Social Policy, v32. p. 131 a 148. Jun. 2016.
CHOPRA, Mickey, MASON, Elisabethh. Millennium Development Goals: background. Londres: Archives of Disease in Childhood, v.100, 2015.
DOSS, Alan. The Audacity of Change: A Specific Example of How the UN Can Still Make a Difference. PassBlue, 2021.
FUKUDA-PARR, Sakiko. Theory and Policy in International Development: Human Development and Capability Approach and the Millennium Development Goals. Oxford: International Studies Review. V 13. p. 122 – 132, 2011.
HULME, David. The Making of the Millennium Development Goals: Human Development Meets Results-Based Management in an Imperfect World. Manchester: University of Manchester, 2007.
MCARTHUR, John. RASMUSSEN, Krista. Change of pace: Accelerations and advances during the Millennium Development Goal era. Washington: Global Economy and Development. V. 105, p. 132-143, 2017.
The Millennium Development Goals Report. Nova York: ONU, 2015.
United Nations millennium declaration. Nova York: United Nations General Assembly, 2000.