Há exatos dez anos, o dia 20 de outubro de 2011 marcou como sendo a morte do então ditador da Líbia, Muammar Gaddafi, uma figura polêmica que já permanência no poder por 42 anos, onde após as manifestações contrárias ao seu governo da Primavera Árabe ocorreram mobilizações internacionais contra a resposta interna de seu governo as manifestações.
Gaddafi e a relação com o Ocidente
A Líbia é dividida por três distintas áreas: Tripolitânia no litoral leste, na qual Gaddafi tinha maior prestígio; Cirenaica, litoral oeste, região mais abundante de petróleo, local o qual se iniciaram os protestos contra o governante; e Fezzan no sudoeste desértico. Sua região passa ao controle italiano em 1911, quando derrota o Império Otomano. Após a Segunda Guerra conquistou a sua independência em 1951, se estabelecendo como uma monarquia constitucional pelo líder religioso Mohamed Idris (RIBEIRO, 2012).
Com o reinado de Idris, a Líbia seguiu sendo financiada pelas potências ocidentais, em 1958 quando foi descoberto petróleo, o financiamento se intensificou ainda mais. Após 10 anos de exploração, em 1968, Líbia era o segundo produtor de petróleo no mundo árabe, perdendo somente para Arábia Saudita, mas isto não impediu que a desigualdade se alterasse. Neste contexto de desigualdade e influenciado pelo nasserismo, cresce a figura do Coronel Muammar Gaddafi, organizando o golpe de Estado, destituindo o rei, em 1969. Sua proposta era de criar uma aliança entre as tribos, fomentando o socialismo árabe e desenvolvendo o panarabismo, que mais tarde seria substituído pelo panafricanismo (RIBEIRO, 2012).
Com o golpe, Gaddafi forçou novos contratos para as empresas petrolíferas estrangeiras a repassarem mais lucros para o seu regime. Estes dividendos foram a fonte para promover reformas de bem estar social, que pretendiam ir de acordo com o “Livro Verde” escrito por Gaddafi com o intuito de ser o seu “guia” político ideológico. As reformas incluíram dentre outras ações, o funcionamento da educação e saúde gratuitas, além de desenvolver o serviço público para melhor cobertura social. No entanto, outros setores econômicos não foram expandidos, a Líbia se tornou extremamente dependente da venda de petróleo, em 1987, cerca de 75% da população era empregada pelo serviço público (LAESSING, 2020).
Em virtude de seu posicionamento anti-imperialista, Gaddafi buscou estabelecer um sentimento de nacionalismo líbio, excedendo os limites democráticos caso não falassem outro idioma que não o definido pelo seu governo, determinou que somente uma religião deveria ser seguida, além de reprimir com violência aqueles que não eram a favor de seu regime (NETTO, 2012). Sua relação com o exterior foi conturbada, desde os anos 80, Reagan acusava Gaddafi de financiar ações terroristas, por consequência e demanda americana foram impostas as Resoluções 748/1992 e 883/1993, pelo Conselho de Segurança da ONU (RIBEIRO, 2012).
Dessa forma, a condição de vida internamente se deteriorou, encurralado, ao longo dos anos 90, Gaddafi buscou normalizar suas relações com o ocidente. Apesar das sanções às empresas petrolíferas seguiram a atuar no país, pois a proximidade estratégica com a Europa favorecia uma alternativa na obtenção deste recurso. Em 1999, fechou um acordo com a ENI, estatal italiana, para a construção do gasoduto “Greenstream” que ligaria Líbia e Itália, mas somente após o término do embargo em 2003, a Líbia restabeleceu suas relações econômicas com o mundo de forma mais contundente. Isto se deu por conta de que Gaddafi formalmente estendeu seu apoio à “Guerra ao Terror” de Bush, além de entregar os agentes executores do atentado da Pan Am acometidos em 1988 (RIBEIRO, 2012; OLIVEIRA, 2015).
No decorrer do novo milênio, Gaddafi conseguiu a reaproximação com o ocidente, sempre foi considerado “excêntrico e errático”, mas não impediu de realizar negócios visto que a Líbia detinha a barganha do petróleo. Nestes anos seguintes, como política externa formulou a ideia de uma moeda única para os países africanos, algo que chamou a atenção das potências mundiais. Internamente deu início a privatizações, promovendo a abertura especialmente no setor de petróleo, mas em virtude destas propostas, o país passou a vivenciar aumento no desemprego, preços crescentes, gerando insatisfação popular culminando nas manifestações contra o seu governo, como resposta Gaddafi manteve sua atitude autoritária que acompanhou todo seu regime as reprimindo com força (OLIVEIRA, 2015).
Primavera Árabe e OTAN por mudanças
Na Líbia, o estopim da guerra civil proporcionado pela Primavera Árabe se iniciou em fevereiro de 2011 com manifestações contrárias a Gaddafi, na região de Benghazi, região de alta influência das empresas petrolíferas. A despeito das contradições intrínsecas ao regime, chamava a atenção o fato de que a Líbia até então detinha o segundo maior IDH da África, se sustentando por sua economia com base distributiva (RIZZO, 2015).
As manifestações de Benghazi reivindicavam maior abertura ao ocidente, diferente de outros países da Primavera Árabe, na Líbia a contestação vinha em parte do ramo petrolífero, desejavam maior participação estrangeira e menor controle estatal, assim foi formado o Conselho Nacional de Transição (CNT) concentrando grupos de oposição (RIZZO, 2015). O avanço dos rebeldes continuou até o final de fevereiro, já dominando diversas cidades do país, concomitantemente foi “aprovado pela CSONU a nova resolução (1970/2011) que clamava pelo fim das hostilidades, mas também congelava os bens e viagens dos membros do Governo, além de impedir vendas de armas para Líbia” (OLIVEIRA, 2015, p.673).
A resolução foi ineficaz, Gaddafi conseguiu repelir os rebeldes em meados de março, retomando as cidades centrais do país a oeste e avançando em direção a Benghazi, avançando para o fim da guerra civil. Foi então que em 17 de março, através da resolução 1973/2011, a CSONU, pela primeira vez, agiu autorizando o uso da força militar para proteger vidas humanas contra a vontade de um Estado funcional. Todavia, é necessário contextualizar esta intervenção. Pelo histórico de Gaddafi, seu governo contava com pouco apreço internacional para sua defesa (RIZZO, 2015; OLIVEIRA, 2015).
Para aprovação da Resolução 1973, os principais atores, diga-se EUA, França, Reino Unido e Itália, agiram para reafirmarem sua vontade de trocar o comando do governo líbio para um governante que fosse mais alinhado com seus interesses. Além disso, a Líbia nos últimos anos tinha se aproximado de países como a China, Rússia e Brasil, concorrentes econômicos diretos das potências do Norte Global (RIZZO, 2015).
As potências empregaram o princípio de “Responsabilidade de Proteger” como pretexto para a intervenção militar, esta medida contou com manifestações contrárias de diversos países do Sul Global, principalmente dos BRICS, que argumentaram que a base deste pretexto estava sendo feito com falsas premissas, segundo eles, os rebeldes estavam armados, enquanto os militares gaddafistas buscaram agir primeiramente pela reorganização usando armas-não letais, e somente após sofrerem baixas responderam com força. Soma-se o fato de que eram estes rebeldes historicamente faziam insurreições contra o governo, tornando este enfrentamento uma questão somente de soberania nacional (OLIVEIRA, 2015).
Porém, com o suporte da Liga Árabe e com parte do apoio internacional, foi aprovada a Resolução 1973, onde os países se unificaram através da OTAN iniciando suas operações de ataque às tropas de Gaddafi, cabe destacar que constava na resolução somente ações para a proteção de civis desarmados e ameaçados pelas forças de Gaddafi. Contrariamente a isto, EUA, França e Grã-Bretanha enviaram suas tropas, armaram e treinaram milícias rebeldes, além de recrutar mercenários de outros países. Tal posicionamento e ações evidenciam que a preocupação ocidental não era apenas a proteção civil e sim remover Gaddafi da presidência por motivos ideológicos e econômicos. O que foi inicialmente comemorado como um marco democrático, se transformou na base de construção de um Estado falido pelas mãos das grandes potências que visavam somente seus interesses econômicos na região (OLIVEIRA, 2015).
A queda do Regime Gaddafista e a Morte do Ditador
Depois de meses de conflito o objetivo dos rebeldes era chegar a Trípoli, a capital da Líbia onde se concentrava a maior parte dos militares e pessoas pró-Gaddafi e onde acreditavam que estava o líder do regime. Dessa forma, ocupar Trípoli significaria um importante passo para pôr fim ao regime gaddafista. Porém, Gaddafi não estava na capital causando dúvidas sobre sua localização. Alguns diziam que ele provavelmente já não estava na Líbia, outros acreditavam que ele ainda permanecia no país. Sendo assim, após a tomada de Trípoli, iniciou-se a caçada à procura de Gaddafi (NETTO,2012).
O presidente do CNT, acreditava que “o regime não chegaria ao fim até que Kadafi fosse capturado, vivo ou morto” (NETTO, 2012, p.286), logo recompensas foram oferecidas àqueles que capturassem o líder. Já Gaddafi, mesmo escondido e sendo procurado pelos rebeldes, se comunicava com os líbios e com a imprensa via rádio dizendo que voltaria e lutaria pela Líbia. Apesar de soar provocativo, com a tomada de Trípoli nem mesmo os ministros e membros do governo acreditavam em uma vitória de Gaddafi, já que a administração da Líbia por parte do governo já não existia e em 26 de agosto o CNT declarou a instalação do governo provisório (NETTO,2012).
A fim de ocupar todo o território da Líbia e encontrar Gaddafi, as tropas comandadas pelo CNT foram para Sirte, a cidade natal de Gaddafi e uma das cidades mais leais ao regime. Mas, na cidade os revolucionários sofreram resistência por parte dos líderes tribais de Sirte, ao qual tentaram inicialmente resolver através das negociações (NETTO,2012).
Com o fracasso das negociações, as tropas do CNT ingressaram para o que se tornaria mais um cenário de guerra sanguinário e destrutivo em Sirte. Foi durante um ataque em conjunto à OTAN para a rendição de Sirte, que Muammar Gaddafi foi capturado enquanto tentava fugir da cidade e quando estava sendo levado pelas tropas do CNT, com uma multidão de rebeldes à sua volta, Gaddafi foi baleado. Dentro de uma ambulância veio a constatação, Gaddafi não resistiu e junto com a sua morte caiu 42 anos de um regime autoritário que privou durante todo esse tempo, a liberdade e os direitos humanos dos líbios (NETTO,2012).
Porém, o fim do regime trouxe junto a insegurança do futuro da Líbia, ainda mais com a democracia sendo construída em cima de um suposto crime de guerra, em que o governo provisório apoiado pelo Ocidente não respeitou as convenções internacionais sobre prisioneiros de guerra, permitindo a morte de Gaddafi.
Mesmo que as mortes tivessem sido cometidas em um contexto de guerra, o sinal enviado pelos rebeldes, ao permitir as execuções e acobertar seus autores, era um péssimo presságio para um país que pretendia se reconstruir sobre bases democráticas. Mais: era no mínimo constrangedor para o Ocidente, que apoiara os revolucionários até o último instante e que poderia ter exigido respeito às convenções internacionais sobre prisioneiros de guerra. Embora estivesse impregnada por uma atmosfera de liberdade, a Líbia dos primeiros dias pós regime não era muito diferente, em relação a justiça e igualdade, daquela dirigida por Kadafi e suas mãos sujas de sangue (NETTO, 2012, p. 31 e 32).
Anos depois do fim do regime gaddafista a Líbia ainda enfrenta dificuldades para se estabelecer após a ditadura, que reflete no meio social, econômico e político. De fato, começar um novo governo, agora democrático, após 42 anos de autoritarismo foi um grande desafio para os governantes. A incerteza da população, os diferentes grupos, a falta de um exército nacional, conflitos armados, a existência de muitos grupos milicianos são só alguns dos fatores que pairavam sobre a Líbia durante esses anos (SARAIVA,2014).
Recentemente, o presidente do Conselho Presidencial da Líbia, trouxe nas eleições esperanças de um pouco de paz no país, anunciou um projeto para uma reconciliação nacional, libertando presos políticos incluindo o filho de Gaddafi, Saadi Gaddafi. Assim, busca-se com esse projeto que a Líbia possa superar os acontecimentos envolvendo a OTAN e o seu último regime e finalmente pensar em um futuro com democracia e respeito aos Direitos Humanos.
Referências
LAESSING, Ulf. Understanding Libya Since Gaddafi, Oxford University Press, 2020.
NETTO, Andrei. O silêncio contra Muamar Kadafi. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
OLIVEIRA, G. Z.. A Intervenção Ocidental na Líbia: Interesses Ocidentais e o Papel da Liga Árabe. Brazilian Journal of International Relations, v. 4, p. 670-693, 2015
RIBEIRO, F.G.D. B..Líbia, um caso particular: da guerra civil à guerra internacional pelo controle dos poços de petróleo. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online),v. v12, p. 134, 2012.
RIZZO, A. Entre o Desenvolvimento e a Segurança: Cooperação Sul-Sul entre Brasil e Líbia nos governos Lula e Dilma. Dissertação de Mestrado, 2015
SARAIVA, Maria F.A Líbia Pós-Kadhafi: Geografia, segurança e direitos humanos. IDN Brief, Portugal, jul. de 2014.