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Novas Tensões na Síria: Aleppo e Idlib como Reflexo de Rivalidades Globais e Regionais

Em 29 de novembro de 2024, insurgentes sírios, liderados pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), lançaram uma ofensiva surpresa em Aleppo, a segunda maior cidade da Síria, marcando a primeira incursão significativa desde 2016. A ação resultou na captura de dezenas de vilarejos e áreas estratégicas nas províncias de Aleppo e Idlib, provocando intensos combates com as forças governamentais e causando a fuga de civis das regiões afetadas.

Essa ofensiva se dá no contexto das crescentes tensões no Oriente Médio. A recente trégua entre Israel e o Hezbollah no Líbano, juntamente com os conflitos em Gaza, pode ter criado uma oportunidade para os insurgentes sírios intensificarem suas operações, aproveitando a possível distração das forças pró-governo e seus aliados.

Além disso, a guerra na Ucrânia tem demandado recursos significativos da Rússia, um dos principais apoiadores do governo sírio. Essa redistribuição de esforços pode ter enfraquecido a capacidade de resposta das forças governamentais sírias, facilitando os avanços dos insurgentes em regiões anteriormente sob controle estatal.

A guerra civil na Síria, iniciada em 2011, teve suas raízes em protestos populares contra o regime de Bashar al-Assad, que rapidamente evoluíram para um conflito armado complexo, envolvendo múltiplos atores internos e externos. Ao longo dos anos, a intervenção de potências regionais e internacionais, como Rússia, Irã, Turquia e Estados Unidos, além de grupos como o Hezbollah, moldou o curso da guerra, transformando o país em um campo de batalha de interesses geopolíticos divergentes.

Compreender a escalada síria de 2024 exige um olhar que vá além das batalhas recentes, explorando os fatores históricos que levaram à guerra civil e as condições internacionais que sustentam a crise.

Terrorismo, Rivalidades e a Ascensão do Hayat Tahrir al-Sham

O papel do Hayat Tahrir al-Sham na recente ofensiva destaca o contínuo impacto do terrorismo na dinâmica síria. O HTS, liderado por Abu Mohammed al-Golani, emergiu como a principal força oposicionista na região de Idlib, mas permanece classificado como organização terrorista pelos Estados Unidos e pela ONU. Embora Golani tenha buscado redesenhar a imagem do grupo, rompendo com a Al-Qaeda em 2016, suas operações continuam sendo vistas como uma ameaça à estabilidade.

A ofensiva foi amplamente documentada pelo HTS por meio do canal de Telegram “Deterring Aggression”, reforçando seu uso estratégico da comunicação para atrair atenção internacional e consolidar apoio local. A habilidade do HTS de coordenar ataques complexos, como a captura da Base da 46ª Brigada, reflete um cenário em que grupos armados continuam a explorar o vazio de poder, enquanto o regime de Assad enfrenta desafios crescentes em manter o controle.

O Contexto que Levou à Guerra Civil Síria

A Síria, anteriormente considerada um polo de estabilidade no Oriente Médio, sofreu um colapso político e social em 2011, durante a Primavera Árabe. Inspirados pelos movimentos populares no Egito e na Tunísia, milhares de sírios foram às ruas exigir reformas econômicas, maior liberdade política e o fim da repressão autoritária sob o regime de Bashar al-Assad. A resposta violenta do governo, caracterizada por prisões em massa, torturas e repressão letal, transformou o que começou como protestos pacíficos em um conflito armado multifacetado, envolvendo grupos opositores internos, facções extremistas e potências estrangeiras.

Desde 1970, a Síria foi governada pela família Assad, começando com Hafez al-Assad e, posteriormente, seu filho Bashar al-Assad em 2000. O regime consolidou-se por meio de um sistema centralizado e autoritário, apoiado por uma poderosa rede militar e de segurança. Embora o regime mantivesse certa estabilidade, sua base de apoio concentrava-se entre os alauítas, uma minoria religiosa que representa cerca de 12% da população. Isso gerou desconfiança entre a maioria sunita, que se sentia marginalizada politicamente. Essa exclusão sectária intensificou tensões étnico-religiosas que se tornariam combustíveis para o conflito.

Entre 2006 e 2010, a Síria enfrentou uma das piores secas de sua história recente. Cerca de 1,3 milhão de pessoas no nordeste do país foram afetadas, com muitas abandonando áreas rurais em direção às cidades. A migração em massa exacerbou o desemprego e as pressões sobre os serviços urbanos. Além disso, reformas neoliberais promovidas pelo regime, como a privatização de setores estatais, beneficiaram uma elite próxima ao governo, aumentando a desigualdade e alimentando o descontentamento popular.

Desde os anos 2000, a Síria ocupava uma posição estratégica, servindo de ponte entre Irã, Líbano e grupos como o Hezbollah. Esse papel, no entanto, também a colocou no centro das rivalidades regionais, particularmente com potências sunitas como Arábia Saudita e Turquia, que buscavam conter a influência iraniana.

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Fonte: maps.lib.utexas.edu

Da militarização dos Protestos à disputas de Potências

A repressão governamental levou a deserções entre militares e ao surgimento de grupos armados, como o Exército Livre da Síria (FSA), formado por dissidentes das forças de segurança. Em 2012, o conflito escalou com a entrada de facções extremistas, incluindo o Estado Islâmico (ISIS) e a Frente Nusra (atual Hayat Tahrir al-Sham, HTS), que exploraram o vazio de poder em regiões periféricas. Esses grupos transformaram a guerra civil em um cenário de múltiplas frentes, dificultando qualquer resolução unificada.

O conflito na Síria rapidamente atraiu intervenções internacionais que moldaram de maneira decisiva sua dinâmica, com diversas potências estrangeiras utilizando o país como palco para a promoção de seus interesses estratégicos e rivalidades regionais.

A Rússia, aliada histórica do regime sírio, interveio diretamente em setembro de 2015, a pedido de Bashar al-Assad. Moscou realizou uma intensa campanha de bombardeios aéreos, focada principalmente em áreas controladas por rebeldes e grupos jihadistas, consolidando a posição de Assad em territórios estratégicos. Além do apoio aéreo, a Rússia forneceu treinamento militar, armamento e assistência logística às forças governamentais. Essa intervenção também visava garantir a presença militar russa no Mediterrâneo Oriental, com a base naval em Tartus e a aérea em Hmeymim, além de reafirmar o papel de Moscou como uma potência global influente no Oriente Médio. A atuação russa foi considerada um ponto de virada no conflito, permitindo que Assad retomasse Aleppo em 2016.

Os Estados Unidos, por outro lado, adotaram uma abordagem multifacetada. Inicialmente, em 2012, apoiaram financeiramente e logisticamente grupos rebeldes moderados como parte de uma estratégia para derrubar Assad. No entanto, com a ascensão do Estado Islâmico em 2014, Washington redirecionou seus esforços para combater o grupo extremista, colaborando com as Forças Democráticas Sírias, uma coalizão liderada por curdos. Essa parceria foi central para a derrota territorial do ISIS em 2019, mas também gerou tensões com a Turquia, que considerava as milícias curdas afiliadas ao PKK uma ameaça à sua segurança nacional. A presença militar dos EUA no nordeste da Síria permanece focada na contenção do ISIS e na proteção de campos de petróleo, ressaltando o peso estratégico da região.

O Irã e o Hezbollah libanês desempenharam um papel fundamental no fortalecimento do regime de Assad. Desde 2013, Teerã forneceu tropas, treinamento e armamento, enquanto o Hezbollah atuou diretamente no campo de batalha, desempenhando papel decisivo na retomada de áreas como Qusayr e Aleppo. A aliança com a Síria faz parte da estratégia iraniana de criar um eixo de resistência xiita que conecta Teerã ao Líbano, passando pelo Iraque e pela Síria. A presença iraniana também ampliou a influência de Teerã na região, mas intensificou as tensões com Israel, que frequentemente realiza ataques aéreos contra posições iranianas em território sírio.

A Turquia, por sua vez, envolveu-se militarmente no norte da Síria, alegando combater o PKK e suas afiliadas curdas, como as Unidades de Proteção Popular (YPG). Ancara lançou múltiplas operações militares, incluindo a operação Fonte de Paz em 2019, que estabeleceu uma zona de segurança ao longo da fronteira. Além disso, a Turquia apoia grupos opositores como o FSA, fornecendo treinamento, armamento e suporte logístico. A atuação turca reflete não apenas preocupações de segurança, mas também o desejo de aumentar sua influência na região, criando uma esfera de controle no norte da Síria que serve como barreira contra a autonomia curda.

Essas intervenções internacionais transformaram a guerra civil síria em um conflito de múltiplas dimensões, no qual disputas regionais e mundiais se entrelaçam com dinâmicas locais, perpetuando a instabilidade e dificultando uma resolução política abrangente.

Entre 2017 e 2020, vários acordos de cessar-fogo foram negociados sob a mediação de Rússia, Turquia e Irã, como parte do processo de Astana. No entanto, essas iniciativas falharam em produzir uma solução política abrangente, com cada lado aproveitando os intervalos para rearmar suas forças.

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Vista de Aleppo – Foto: watchsmart | Flcikr

Recrudescimento dos combates em Aleppo e Idlib

Os combates ocorrem em um contexto de esgotamento econômico e militar do regime de Assad, agravado pelas sanções internacionais e pela distração de seus principais aliados. A Rússia, por exemplo, está profundamente envolvida na guerra na Ucrânia, enquanto o Hezbollah enfrenta tensões crescentes no Líbano devido ao recente conflito com Israel. Essa combinação de fatores criou brechas que grupos opositores, como o HTS, exploraram para lançar uma ofensiva coordenada em áreas estratégicas.

A Síria, após mais de uma década de guerra civil, tornou-se um epicentro de rivalidades geopolíticas e regionais, onde atores competem por influência, frequentemente em detrimento da estabilidade local. Com Aleppo e Idlib emergindo como símbolos dessa complexidade, a recente ofensiva destaca como conflitos aparentemente locais se entrelaçam com dinâmicas internacionais mais amplas. A guerra na Síria reflete não apenas questões internas não resolvidas desde a Primavera Árabe, mas também os efeitos de crises regionais e o impacto de intervenções externas. 

Especialistas, como Charles Lister, do Middle East Institute, destacam que a “pressão contínua sobre Moscou na Ucrânia diminuiu a prioridade da Síria em sua agenda estratégica, criando oportunidades para avanços opositores.”

Além disso, a utilização de drones pelos rebeldes em ataques estratégicos, como na base aérea de An-Nayrab, revela uma mudança nas táticas da oposição e expõe a vulnerabilidade das forças governamentais, que dependem fortemente do apoio logístico russo.

A recente guerra entre Israel e o Hezbollah, encerrada com um cessar-fogo em novembro de 2024, trouxe impactos diretos à Síria. Israel intensificou ataques aéreos em território sírio, visando posições do Hezbollah e forças iranianas, como depósitos de armas e infraestrutura logística. Esses ataques não apenas enfraquecem os aliados do regime de Assad, mas também ampliam o desgaste das defesas sírias, já comprometidas após anos de conflito.

O Hezbollah tem redirecionado esforços para o Líbano, deixando lacunas que os grupos rebeldes exploraram em sua ofensiva recente. A interligação desses conflitos regionais reforça a fragilidade da Síria como um espaço de constante transbordamento de crises vizinhas, conforme ressaltado por Abbas Araghchi, ministro das Relações Exteriores do Irã, ao descrever os eventos como parte de um “prolongado plano de desestabilização da região por potências externas.

A Síria tornou-se um microcosmo das disputas entre potências, onde Estados como Rússia, Estados Unidos, Turquia e Irã utilizam o território sírio para promover suas agendas estratégicas. Como observa Murad Sadygzade, presidente do Middle East Studies Center, “o conflito em Idlib é um reflexo direto das fraturas do sistema internacional, onde a falta de cooperação entre potências alimenta crises locais com implicações globais.”

Referências

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KNICKMEYER, Ellen. What to know about sudden rebel gains in Syria’s 13-year war and why it matters. Associated Press, 29 nov. 2024. Disponível em: https://apnews.com/article/syria-hts-assad-aleppo-fighting-2be43ee530b7932b123a0f26b158ac22. Acesso em: 29 nov. 2024.

SADYGZADE, Murad. Who is behind the new Syria war flare-up? The interplay of external forces mirrors broader trends of rivalry among major powers, increasing the likelihood of a large-scale conflict. Middle East Studies Center, 28 nov. 2024. Disponível em: https://politico.com/news/2024/11/29/syrian-opposition-aleppo-offensive-00192037. Acesso em: 29 nov. 2024.

THE TIMES. Rebels storm Assad troops in Aleppo as Syrian war reignites. The Times, 29 nov. 2024. Disponível em: https://www.thetimes.co.uk/article/rebels-storm-assad-troops-in-aleppo-as-syrian-war-reignites-ls6hkvdm0. Acesso em: 29 nov. 2024.

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