“O último voo do flamingo” é um livro pertencente ao gênero literário realismo fantástico, escrito pelo moçambicano Mia Couto, jornalista, biólogo e escritor, considerado um dos escritores africanos mais prestigiados e lidos no período contemporâneo. Mia Couto é membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, ganhador de vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Camões 2013 e o Neustadt Prize 2014, e possui mais de trinta livros entre poemas, contos, crônicas e romances. Suas obras são caracterizadas pelo resgate e valorização da tradição cultural de Moçambique.
Publicado no Brasil pela Companhia das Letras, O último voo do flamingo possui um pouco mais de 200 páginas e encontra-se organizado em uma carta que inicia a narrativa, mais 20 capítulos, um posfácio e um glossário. Com um estilo narrativo não-linear, o enredo adota um narrador em primeira pessoa, mas com um recurso de partilhar o discurso narrativo com as personagens que se apresentam. O contexto da narrativa se dá alguns anos após o encerramento da guerra civil (1976-1992) entre o exército de Moçambique e o exército da Resistência Nacional Moçambicana em virtude da assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma. Buscando realizar o desarmamento das tropas remanescentes, o governo moçambicano conta com o apoio da tropa da Organização das Nações Unidas (ONU), e organiza suas primeiras eleições gerais multipartidárias. A partir desse contexto, a obra se inicia com uma carta do Tradutor oficial de Tizingara, o personagem responsável por nos inserir na narrativa, o qual expõe os motivos que o levaram a narrar a história. Ele foi acusado e condenado por mentir e falsear provas, e pretende expor os acontecimentos e as muitas vozes que traz em sua lembrança.
Assim, na vila fictícia Tizingara, no interior de Moçambique, eventos estranhos estão acontecendo. Vários soldados das forças da paz da ONU, os capacetes azuis, estão explodindo misteriosamente, sem deixar sangue e ossos no local, exceto pelo boné azul e por um único membro de cada um deles: o pênis. Devido ao aumento no número das inexplicáveis explosões, o que acabou atraindo a atenção internacional, a ONU envia o delegado italiano Massimo Risi para conduzir investigações na vila moçambicana e descobrir tal mistério. Risi é acompanhado a todo momento pelo personagem Tradutor, designado pelo administrador local, enquanto se desloca no terreno e conhece as distintas personagens: Estêvão Jonas, o administrador da vila, Chefe provincial; Dona Ermelinda, “a Primeira Dama”, esposa de Estêvão; Chupanga, o mensageiro e adjunto do administrador; Ana Deusqueira, a primeira e única prostituta da vila; Temporina, a “moça-velha”, uma mulher com corpo jovem, porém com feições de idosa; velho Sulplício, pescador e pai do Tradutor; padre Muhando; feiticeiro Zeca Andorinho; entre outras personagens.
Esperando encontrar uma explicação racional para reportar à ONU, logo percebemos a inquietação e agonia de Massimo diante da sua frustação por respostas concretas. Uma explicação racional sobre as explosões seria as minas terrestres. Mas, conforme conduz os depoimentos com os habitantes locais, novas explicações são trazidas, como o entendimento de que as explosões dos estrangeiros seria uma vingança da própria terra, já que os governantes locais não têm respeitado as tradições e os antepassados, bem como o entendimento de que as explosões seriam fruto de feitiços encomendados por homens locais devido inveja e ciúme dos estrangeiros.
Entender a língua se torna o menor dos problemas para Massimo. Compreender aquele mundo, para uma mente cartesiana, acaba sendo uma tarefa árdua, senão impossível. A figura do Tradutor se mostra essencial, à medida que Massimo se ancora nele para traduzir não só a língua, mas os próprios relatos em si. Como relatos de que a falecida personagem Dona Hortênsia convive com os vivos e aparece na forma de louva-a-deus e de que o pai do Tradutor pendura seus ossos para dormir porque lhe trazem cansaço. Contudo, algumas coisas simplesmente não se traduzem, mas são vividas e sentidas. A narrativa é repleta de depoimentos enigmáticos, vivências contraditórias e cenas que ultrapassam fronteiras do “conhecimento”. Aliás, não será verdade estes depoimentos? É exatamente isto que a obra nos instiga: não se trata de uma história horizontal, circunscrita em um tempo homogêneo, mas de um tempo saturado de distintos “agoras” e verdades a partir das vivências e conhecimentos emanados do complexo universo cultural de Tizingara e seus habitantes.
O recurso de trazer provérbios africanos, ditos e crenças de Tizingara, extratos de diálogos de personagens e outras falas e palavras antes de iniciar cada capítulo, serve como formas de expressão deste mundo cultural oral, cujo papel é atribuir uma semântica aà letra (escrita) através da voz (tradição oral), além de agir como um lembrete de que a pessoa leitora precisa fazer o exercício de desconstruir o que se entende por verdade e conhecimento. A própria convivência e imersão de Massimo na história e na cultura de Tizingara desencadeia um deslocamento de percepção, iniciado pelo Tradutor e que é continuado pela Temporina, personagem essa que atrai atenção e afeição do delegado da ONU. Desse modo, Temporina acaba ganhando um papel de também ensinar Massimo a desvendar os meandros culturais de Tizingara, uma terra cujo olhar escapa de uma rotulação ocidental.
Outra característica desta realidade, é que o emaranhado de vozes, percepções, identidades e crenças, neste rico e complexo universo cultural, também vive sob feridas deixadas pelas lutas de libertação e independência política. A vila moçambicana sofre tanto com o domínio estrangeiro, quanto com o controle local, tendo em vista que os próprios governantes locais se corromperam pela ganância, deixando de lado o valor da própria terra e de sua gente. O administrador local Estêvão, que lutou no passado pela independência política de Moçambique, tira proveito constantemente do seu cargo atual por meio de roubos e desvios. Entre abusos de poder e corrupção generalizada, a obra situa Tizingara em um contexto de indiferença ao povo africano e do favorecimento daqueles que buscam enriquecer.
Com uma inversão do foco narrativo, o mistério das explosões dos capacetes azuis se insere em relações de poder que permeiam o grande problema que o livro propõe evidenciar: o conflito entre a modernidade ocidental e a tradição africana. Segundo Stuart Hall (2018), o “pós-colonial” marca uma passagem de uma nova configuração de poder dentro de uma conjuntara histórica. No passado, com a colonização, relações de poder eram articuladas desigualmente entre as sociedades colonizadoras e as colonizadas através de dominação e exploração socioeconômica e de discriminações sociais. E, ainda que o colonialismo enquanto sistema político formal tenha terminado na História, relações de poder desiguais foram deslocadas e reencenadas nas sociedades que conquistaram a sua independência política, bem como em todo o sistema global, provocando contradições internas e desestabilização social, cultural, econômica e política (HALL, 2018).
A figura de Estêvão, que encarna a corrupção em Tizingara, representa que a liberdade e a independência política de Moçambique não significaram o fim das amarras coloniais, porquanto novas formas de poder foram criadas. A imposição da língua e da cultura dos estrangeiros sobre os africanos, algo que remonta também desde o período da colonização, é outra marca colonial que perdura, tendo em vista que a línguas ocidentais, como o português, no caso do contexto da narrativa, buscam agir como uma uniformização social e cultural – do local ante o global –, por meio da desvalorização da língua local.
Outro exemplo é a necessidade da obtenção de uma resposta racional e concreta para a ONU a respeito das explosões, porquanto o saber local e as crenças não são reconhecidas e validadas. Isso porque, para o pensamento ocidental, aliás binário e cartesiano, não há espaço para múltiplas verdades e outras formas de conhecimento que possam existir acerca de um mesmo fato. Inclusive, relacionar os depoimentos dos habitantes locais enquanto fantasia corresponde uma forma de epistemicídio – o extermínio do conhecimento do outro –, estratégia essa utilizada pelos colonizadores ao imporem seus discursos e visões de mundo discriminatórias, classificatórias e violentas. Portanto, a globalização econômica perfaz um projeto global, ocidental, que afeta todo o sistema internacional, fazendo com que histórias locais, como em Tizingara, sejam forçadas a se adaptarem e a se integrarem, uma vez que elas são rejeitadas ou ignoradas (MIGNOLO, 2020).
Logo, Mia Couto nos revela uma contundente crítica ao colonialismo e às mazelas sociais e conflitos sócio-políticos em que a vila e o próprio país – assim outras nações africanas e do Sul global – padecem em uma era pós-colonial de globalização econômica, como a falta de recursos e o esquecimento da tradição e memória local. Entretanto, assumir a existência de tais perversidades da modernidade e da globalização não equivale dizer que não haja ação e agência de sujeitos que convivem com as feridas coloniais, como as sociedades africanas. A própria figura do pênis no interior do romance representa uma espécie de metáfora para aquele momento político, pela vulnerabilidade do patriarcado e pela (des)ordem imposta. A cena cômica acerca da decepção de determinado “membro” mediante a união entre as personagens Dona Ermelinda e Ana Deusqueira, inimigas até então, representa uma verdadeira resistência à ordem masculina, em que o homem é despido do seu poder. A metáfora do voo e do sonho representada pela imagem do flamingo, que orienta os pescadores que perderam a noção da terra sinaliza o retorno à memória e à tradição africana daqueles que foram empurrados pela modernidade ocidental, renegando seus antepassados. E o final da narrativa, que irá impressionar qualquer pessoa leitora, simboliza o grito da terra e a força da tradição.
À vista disso, O último voo do flamingo é uma obra que merece ser lida e relida por constituir uma análise política das complexas relações culturais, sociais e políticas que entrelaçam o mundo africano no interior da (des)ordem global em que nos inserimos.
Referências
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2018.
MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2020.
Sobre o autor
Mia Couto é jornalista, biólogo e escritor moçambicano, membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, ganhador de vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Camões 2013 e o Neustadt Prize 2014. Conhecido por suas obras que trazem à tona a cultura e as tradições africanas, e mais especificamente, do Estado de Moçambique.
Ficha catalográfica
Título: O último voo do flamingo (2000)
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras; 1ª Edição (29 janeiro 2016)
Idioma: Português
ISBN-10: 8535926836
ISBN-13: 978-8535926835