O primeiro ano do governo de Javier Milei na Argentina foi marcado por uma agenda de reformas econômicas ambiciosas e uma política internacional controversa. Milei, líder libertário que chegou ao poder com promessas de uma terapia de choque, buscou reconstruir a economia argentina após anos de crise, apostando em cortes severos de gastos, desregulação econômica e uma nova postura nas relações externas.
Em função do marco do primeiro ano de governo, vamos analisar os principais aspectos das reformas estruturais e os impactos das ações internacionais ao longo de seu primeiro ano.
Um Ano de Ajustes e Implicações
O primeiro ano de Javier Milei foi marcado por reformas econômicas profundas, com foco na austeridade fiscal, redução do déficit público e controle da inflação. Milei assumiu o governo em dezembro de 2023 em um contexto de crise econômica severa, com inflação anual superior a 210% e déficit fiscal consolidado de aproximadamente 15% do PIB. Prometendo uma terapia de choque e o desmantelamento do que chamou de modelo da casta política, Milei implementou medidas que geraram tanto avanços econômicos quanto tensões sociais significativas (Marcarian, 2024).
Neste artigo, analisaremos as reformas estruturais empreendidas pelo governo Milei no âmbito do ajuste fiscal, controle da inflação e suas implicações socioeconômicas, com base em dados oficiais e análises de consultorias como Opinaia (2024) e INDEC (2024).
El PIB de Argentina crece al mayor ritmo en cuatro años creciendo al 3.9% en el tercer trimestre del año y el riesgo país se desploma a niveles no vistos desde febrero de 2019.
— Wall Street Wolverine (@wallstwolverine) December 17, 2024
La inflación ha pasado del 25% mensual al
2,4% en unos pocos meses. pic.twitter.com/XfICfiHCF1
A Política de Austeridade
Uma das conquistas mais destacadas pelo governo foi o superávit fiscal alcançado pela primeira vez em 123 anos. Esse resultado, obtido em outubro de 2024 após dez meses consecutivos de equilíbrio positivo, foi fruto de um pacote de medidas fiscais rigorosas:
- Redução da Estrutura do Estado: O número de ministérios foi reduzido de 18 para 8, com a extinção de secretarias e órgãos considerados ineficientes. Essa medida, segundo dados do governo, gerou uma economia expressiva no orçamento anual.
- Corte de Cargos Públicos: Mais de 34 mil cargos públicos foram eliminados, como parte de um esforço para enxugar a máquina estatal. Embora a medida tenha contribuído para o ajuste fiscal, críticos apontam o aumento do desemprego como uma de suas consequências (INDEC, 2024).
- Eliminação Gradual de Subsídios: Subsídios em setores essenciais como transporte, energia e combustíveis foram reduzidos drasticamente. Essa política, embora tenha equilibrado as contas, levou ao aumento das tarifas, impactando o orçamento das famílias mais pobres (Cruz, 2024).
O ajuste fiscal trouxe benefícios claros para a economia. Dados do Ministério da Economia da Argentina indicam que o superávit primário acumulado alcançou 746,9 bilhões de pesos argentinos (aproximadamente US$ 753 milhões) até outubro de 2024. Esse desempenho foi celebrado pelo governo como um marco de “responsabilidade fiscal”.
Contudo, o impacto social foi significativo. A retirada dos subsídios resultou em aumentos expressivos nos custos de vida, especialmente para as classes mais vulneráveis. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC), a pobreza atingiu 52,9% da população no primeiro semestre de 2024, intensificando as desigualdades sociais.
A dualidade do superávit fiscal, entre eficiência econômica e custo social, reforça a necessidade de um equilíbrio entre austeridade e políticas inclusivas, que até o momento permanecem ausentes no programa econômico de Milei (O’Donnell, 2024).
Controle da Inflação e Recuperação Salarial
Ao assumir, Milei herdou uma inflação anual superior a 210%, um dos piores índices do mundo. Com medidas focadas na austeridade fiscal e no controle da emissão monetária, a inflação mensal foi reduzida para 1,2% em outubro de 2024.
Esse cenário de estabilização teve impacto direto:
- Valorização Salarial: O salário básico médio aumentou de US$ 300 para US$ 1.100.
- Redução de Juros: A taxa de juros caiu de 133% para 32%, facilitando o acesso ao crédito e incentivando financiamentos de longo prazo, como hipotecas de 30 anos.
Contudo, as reformas econômicas vieram com custos sociais. A recessão de 3% em 2024 e a queda no consumo afetaram especialmente os setores mais pobres, intensificando os índices de pobreza e desemprego.
Desregulação Econômica e Abertura ao Mercado
O governo de Javier Milei trouxe ao centro de sua agenda econômica a desregulação e a abertura ao mercado, com o objetivo de modernizar a economia argentina, atrair investimentos estrangeiros e melhorar a competitividade nacional. Inspirado por princípios liberais, Milei priorizou a redução da intervenção estatal e a eliminação de entraves burocráticos, defendendo que o setor privado é o principal motor do crescimento econômico (Marcarian, 2024).
Ao longo de seu primeiro ano de governo, essas reformas impactaram setores estratégicos como medicamentos, telecomunicações, transporte e o mercado imobiliário, provocando mudanças estruturais significativas.
Eliminação de Barreiras Regulatórias
Uma das principais realizações de Milei foi a eliminação de mais de 800 normas que, segundo o governo, restringiam a competitividade e encareciam os custos para empresas e consumidores. Essas mudanças buscaram destravar o potencial produtivo do país, criando um ambiente mais favorável ao investimento e à inovação.
- Medicamentos e Saúde: A redução das barreiras para a importação de medicamentos foi um passo importante na desregulação do setor. O governo facilitou o acesso a produtos essenciais, promovendo maior competitividade entre fornecedores e redução de custos para os consumidores. No entanto, críticos apontam a necessidade de mecanismos para proteger a produção local e garantir a qualidade dos produtos importados (Cruz, 2024).
- Transporte e Telecomunicações: O fim das restrições ao transporte terrestre e a abertura do mercado de internet satelital aumentaram a concorrência nesses setores. No setor de telecomunicações, a entrada de novos players proporcionou serviços mais acessíveis e melhor cobertura, especialmente em áreas rurais. Essa medida foi elogiada por especialistas como um avanço significativo na inclusão digital e no acesso a serviços essenciais (Opinaia, 2024).
- Setor Imobiliário: A revogação da Lei de Aluguéis, que havia imposto controles sobre contratos de locação, provocou uma expansão da oferta de imóveis e a redução dos preços em até 30% em termos reais. A desregulação permitiu maior liberdade na negociação entre proprietários e inquilinos, incentivando investimentos no mercado imobiliário e aliviando a escassez de moradias. Entretanto, críticos apontam que a medida pode precarizar as condições dos contratos para inquilinos de baixa renda (INDEC, 2024).
O processo de desregulação econômica tem como principal objetivo atrair investimentos, melhorar o ambiente de negócios e estimular a produtividade. Segundo dados do Ministério da Economia, o fluxo de investimentos estrangeiros diretos (IED) registrou um aumento de 18% no primeiro ano de governo, impulsionado pela confiança renovada no mercado argentino.
Contudo, os efeitos positivos da desregulação ainda não foram sentidos de maneira uniforme. A ausência de políticas de compensação social gerou críticas sobre o impacto dessas reformas nos setores mais vulneráveis, evidenciando a necessidade de um equilíbrio entre liberalização econômica e proteção social.
Ações Internacionais
A política externa de Javier Milei representou uma ruptura com administrações anteriores. Sob a bandeira do liberalismo econômico e de uma retórica antissistema, Milei adotou uma postura pragmática e frequentemente provocativa nos fóruns internacionais. Seu foco tem sido reposicionar a Argentina como uma economia aberta ao comércio global e atrair investimentos estratégicos para setores produtivos.
Relação com o Brasil e o Mercosul
A relação entre Argentina e Brasil, dois dos principais parceiros comerciais da América do Sul, foi marcada tanto por tensões diplomáticas quanto por avanços práticos:
- Divergências Políticas: Milei recusou-se a assinar a declaração ministerial sobre igualdade de gênero no G-20 e retirou a Argentina das negociações climáticas na COP-29. Suas ações foram interpretadas como uma rejeição ao multilateralismo tradicional, gerando críticas de líderes regionais.
- Exportação de Gás: Apesar das divergências, os dois países mantiveram a cooperação energética, garantindo a exportação de gás argentino para o Brasil. Esse acordo fortaleceu o papel da Argentina como fornecedor estratégico de energia para o continente (Marcarian, 2024).
- Mercosul-União Europeia: O governo Milei retomou e concluiu as negociações do acordo Mercosul-UE, um marco importante para a integração comercial entre a América do Sul e a Europa. A assinatura desse pacto é vista como uma oportunidade para ampliar mercados, atrair investimentos e impulsionar setores exportadores argentinos.
Abertura Comercial e Relação com os EUA
Milei defendeu com veemência a redução de tarifas dentro do Mercosul e a negociação de tratados bilaterais de livre comércio. Um de seus principais objetivos é firmar um acordo comercial com os Estados Unidos, retomando uma agenda interrompida desde o início dos anos 2000. Esse tratado, segundo o governo, poderia ampliar significativamente as exportações argentinas e atrair investimentos em setores como energia, tecnologia e infraestrutura (Cruz, 2024).
A postura de Milei em relação ao comércio global contrasta com a tendência de desdolarização observada em países emergentes, como os membros do BRICS. Enquanto esses países buscam reduzir a dependência do dólar, Milei aposta em uma maior integração com os Estados Unidos e no fortalecimento do comércio em moeda norte-americana, o que gera debates sobre vulnerabilidade externa e perda de soberania monetária (O’Donnell, 2024).
O comércio internacional foi colocado no centro da estratégia econômica do governo Javier Milei como uma ferramenta-chave para impulsionar o crescimento econômico da Argentina. Apostando na redução de barreiras comerciais, no incentivo a investimentos estruturais e no fortalecimento das relações com os Estados Unidos, Milei buscou reposicionar a Argentina como um protagonista no cenário global e atrair fluxos significativos de capital estrangeiro. Neste contexto, destacam-se as ações voltadas para a facilitação do comércio e o uso de tecnologias emergentes como motores de desenvolvimento.
Integração ao Comércio Internacionais
Uma das principais políticas do governo Milei foi a eliminação de barreiras tarifárias e burocráticas, com o objetivo de facilitar exportações e importações e tornar o mercado argentino mais integrado e competitivo. Entre as medidas implementadas estão:
- Redução de Tarifas de Importação: Foram eliminadas ou reduzidas tarifas sobre insumos estratégicos, como herbicidas, plásticos, eletrodomésticos e produtos LED, promovendo uma redução de custos para a indústria local e beneficiando diretamente o consumidor final.
- Simplificação de Processos Aduaneiros: O governo buscou desburocratizar o processo de importação e exportação, facilitando o fluxo de mercadorias e aumentando a competitividade das empresas argentinas no mercado internacional.
Essas ações representam uma tentativa de modernizar a economia e inseri-la nas cadeias globais de valor, uma estratégia fundamental para economias emergentes que buscam dinamizar suas exportações e atrair novos investimentos (Marcarian, 2024).
O RIGI: Atração de Investimentos Estruturais
O Régimen de Incentivo para Grandes Inversiones (RIGI) foi um dos pilares da agenda econômica de Milei. O programa oferece benefícios fiscais e regulatórios a projetos de grande porte (investimentos acima de US$ 200 milhões), visando atrair capital estrangeiro e impulsionar setores estratégicos.
De acordo com dados do Ministério da Economia, o RIGI já registrou solicitações de investimentos superiores a US$ 11,8 bilhões ao longo de 2024, especialmente em áreas como:
- Infraestrutura: Projetos voltados para modernização de portos, rodovias e transporte ferroviário, fundamentais para escoar a produção argentina.
- Mineração e Energia: Investimentos em extração de lítio, petróleo e gás natural, setores em que a Argentina possui vantagens comparativas expressivas.
- Tecnologia: Desenvolvimento de parques tecnológicos e incentivos a empresas inovadoras em inteligência artificial e automação.
A implementação do RIGI reflete a tentativa do governo de posicionar a Argentina como um destino atrativo para investidores estrangeiros, criando um ambiente de negócios competitivo e estável.
Benefícios e Desafios da Abertura Comercial
A integração ao comércio internacional trouxe benefícios, como a entrada de capital estrangeiro, modernização de setores produtivos e ampliação do acesso a bens importados. Entretanto, especialistas alertam para os desafios:
- Impacto sobre a Indústria Local: A redução de tarifas pode prejudicar setores menos competitivos, expondo a indústria nacional à concorrência externa.
- Dependência de Investimentos Estrangeiros: Embora os investimentos sejam essenciais, a dependência excessiva pode tornar a economia vulnerável a choques externos e decisões de empresas multinacionais (O’Donnell, 2024).
Relação com os Estados Unidos e Promoção de Novas Tecnologias
O fortalecimento das relações com os Estados Unidos foi uma prioridade no primeiro ano de governo Milei. Inspirado pelas políticas desregulatórias norte-americanas, o presidente argentino defendeu a assinatura de um tratado bilateral de livre comércio com os EUA.
O acordo, que não avançava desde o início dos anos 2000, é visto como uma oportunidade para ampliar as exportações argentinas, especialmente nos setores:
- Agronegócio: A Argentina busca expandir a exportação de commodities como soja, carnes e produtos lácteos.
- Energia: A relação com os EUA visa atrair investimentos em petróleo, gás natural e lítio, reforçando a posição argentina como um fornecedor energético estratégico.
Além disso, o governo argentino demonstrou interesse em replicar políticas de desregulação e redução de impostos, buscando criar um ambiente de negócios semelhante ao dos EUA, que atraia multinacionais e investidores internacionais.
Argentina como Hub de Inteligência Artificial
Outro ponto central da agenda de Milei é o posicionamento da Argentina como um hub mundial de tecnologia e inteligência artificial. O governo aposta em três pilares para atrair empresas de tecnologia:
- Energia Abundante: A Argentina possui vastas reservas de gás natural e potencial para geração de energia renovável, essenciais para data centers e processamento em larga escala.
- Terras Frias e Propícias: O clima e a geografia argentina oferecem condições ideais para instalação de infraestrutura tecnológica com baixo custo energético.
- Capital Humano Qualificado: O país conta com profissionais altamente capacitados, sendo líder regional em número de unicórnios tecnológicos (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão).
O governo já iniciou conversas com empresas multinacionais e apresentou planos para o desenvolvimento de um programa nuclear voltado à geração de energia limpa, essencial para a crescente demanda energética impulsionada pela IA (Cruz, 2024).
Conclusão
O primeiro ano do governo de Javier Milei foi marcado por uma combinação de resultados econômicos significativos e desafios sociais e políticos complexos. Sua estratégia de reconstrução econômica, baseada na austeridade fiscal, desregulação econômica e abertura ao mercado internacional, produziu marcos como o superávit fiscal inédito em 123 anos, a redução da inflação de 210% ao ano para níveis manejáveis e um aumento no fluxo de investimentos estrangeiros. Ao mesmo tempo, sua postura pragmática e alinhada ao liberalismo econômico redefiniu as relações da Argentina no cenário internacional, aproximando-se dos Estados Unidos e retomando acordos importantes, como o Mercosul-União Europeia.
Contudo, o impacto dessas políticas não ocorreu sem custos sociais expressivos. A pobreza atingiu mais de 50% da população, enquanto o desemprego ultrapassou os 7%. Cortes severos em áreas como educação e saúde intensificaram o descontentamento popular e as críticas à agenda econômica de Milei. Além disso, sua postura polarizadora em fóruns multilaterais, como o G-20 e a COP-29, trouxe desafios diplomáticos, enfraquecendo as relações com parceiros regionais e levantando questionamentos sobre o isolamento internacional da Argentina.
Outro desafio reside na dependência externa. A aposta em investimentos estrangeiros e acordos bilaterais como motores do crescimento econômico aumenta a vulnerabilidade do país a crises internacionais, especialmente em setores estratégicos como energia e tecnologia. Para que a Argentina mantenha sua trajetória de crescimento sustentável, será necessário equilibrar essa abertura com políticas robustas de fortalecimento da indústria nacional, garantindo que os benefícios econômicos sejam amplamente distribuídos.
No cenário doméstico, o ano de 2025 será crucial para consolidar ou questionar o modelo Milei. A recuperação da economia, projetada para retomar o crescimento após uma recessão de 3% em 2024, dependerá da capacidade do governo de:
- Gerar empregos sustentáveis, enfrentando o desafio do desemprego estrutural.
- Reduzir a pobreza, por meio de políticas inclusivas que atenuem os impactos das reformas.
- Investir em áreas críticas, como saúde e educação, essenciais para o desenvolvimento de longo prazo.
Em síntese, o primeiro ano de Milei no poder trouxe avanços econômicos expressivos, mas revelou as fragilidades sociais e políticas de uma agenda reformista radical. A continuidade do sucesso dependerá da habilidade do governo em combinar crescimento econômico com coesão social, equilibrando pragmatismo econômico com uma agenda voltada para a inclusão e a estabilidade interna. A Argentina está em um ponto de inflexão: o futuro do país será determinado pelas políticas adotadas nos próximos anos e pela capacidade de Milei em harmonizar desafios internos e externos em um projeto de nação inclusivo e sustentável.
A Argentina está em um ponto de inflexão. O que o futuro reserva?