A população mundial está cada vez mais urbana. Se, em 1950, a concentração em cidades no 1950 totalizava 750 milhões de habitantes em todo o mundo, esta saltou para 4,4 bilhões de pessoas em 2020 e tem estimativa de alcançar a marca de 6,40 bilhões de habitantes até 2050. Esta urbanização é, em geral, entendida como o reflexo da crescente industrialização e comercialização dos agrupamentos populacionais e consequente êxodo rural, um fenômeno que é ainda mais avançado à medida em que a globalizada de modernização alcança os quatro cantos do mundo.
Se, por um lado, este fenômeno representa uma maior centralização de culturas, recursos, infraestruturas e mercados, aumentando o contato humano e trazendo vantagens econômicas; por outro, (e sobretudo com a explosão de megacidades), ele também resulta em uma crescente desigualdade social, sucateamento da relação empregatícia, deterioração climática e muito mais. Foi ao reconhecer estas vantagens e desvantagens que a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o 31 de Outubro como o Dia Mundial das Cidades, data que tem como objetivo atrair atenção e conscientização para os mais diversos desafios enfrentados pelos grandes meios urbanos do mundo. Este texto, portanto, pretende explorar um pouco da história e natureza deste dia, bem como os reflexos da urbanização do sistema global e nas Relações Internacionais, para chegar a um maior entendimento do papel da cidade no mundo
História e estabelecimento do Dia Mundial das Cidades
Com a rápida e crescente ocupação urbana no globo, surge o alerta para a consequência do aumento global de poluentes devido esse movimento, o que afetava diretamente a qualidade de vida e gerando diversos problemas ambientais. Derivado da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, no ano de 1978, surge o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), a agência responsável por organizar, monitorar e assegurar o desenvolvimento urbano em nível social e econômico, assim como mantê-lo ambientalmente sustentável. Como forma de reforçar seus propósitos, o ONU-Habitat realiza, anualmente, um mês de conscientização para as causas ambientais e sociais nas cidades, denominadas como Outubro Urbano – o mês tem início com o Dia Mundial do Habitat e, desde 2014, encerramento com o Dia Mundial das Cidades no último dia de outubro.
Toda a celebração do Outubro Urbano gira em torno de dois principais temas de discussão da sociedade internacional; o impacto do crescimento das cidades e as possíveis maneiras de evoluir o bem viver para que se possa manter uma vida sustentável a todos. Inclui, portanto, as pautas sobre energias renováveis, redução e cuidados com resíduos, mobilidade urbana, desigualdade social, dentre outros. No Brasil, o escritório da ONU-Habitat realiza desde 2018 o Circuito Urbano, que consiste em uma iniciativa para ampliar o apoio institucional, além de gerar maior visibilidade a eventos organizados com a temática do mês.
O dia 31, portanto, é escolhido como data de encerramento deste mês temático, como definido na Resolução 68/239 da Assembleia Geral, adotada em 27 de dezembro de 2013. Desde então, o evento vem sido organizado pela ONU-Habitat em parceria como uma cidade-sede escolhida a cada ano, como se verá mais tarde – primeiro evento ocorre em Xangai, em homenagem à Expo 2010 de Xangai. O tema geral do Dia Mundial das Cidades é “Cidade Melhor, Vida Melhor”, cujas repercussões são exploradas a cada ano em subtemas que pretendem discutir seja o sucesso da urbanização, sejam os desafios específicos resultantes deste processo.
Seguem os temas desde 2014:
2014 – Liderando as Transformações Urbanas – com celebrações centradas em Shangai, China, se foca nas inovações possíveis para capacitar o espaço urbano do futuro.
2015 – Projetadas para Viver Juntos – liderado em Milão, Itália, se concentra na necessidade de interação, compartilhamento de recursos e promoção de harmonia nas cidades e bairros.
2016 – Juntos Após a Habitat III – celebra a adoção da Nova Agenda Urbana na conferência Habitat III, em Quito, Equador, adotou um novo paradigma de pensamento relacionado a planejamento, gestão e desenvolvimento urbano.
2017 – Governança Inovadora, Cidades Abertas – liderado por Guangzhou, China, se concentra sobretudo em destacar o papel da urbanização como fonte de desenvolvimento global e inclusão social.
2018 – Cidades Sustentáveis e Resilientes – organizado por Liverpool, Inglaterra, relembra a urgência do asseguramento da segurança nos espaços urbanos.
2019 – Mudando o Mundo: Inovações e uma vida melhor para as gerações futuras – organizado por Ekaterinburgo, Rússia, se foca no papel da inovação tecnológica na qualidade da vida urbana e energia renovável.
2020 – Valorizar as Nossas Comunidades e Cidades – pretende destacar o papel de populações e comunidades locais na segurança, defesa e manutenção da justiça. O primeiro evento híbrido da Observância Global do Dia Mundial da Cidade é hospedado online pelo Quênia, em um evento que se focou na situação de superpopulação de países em desenvolvimento.
2021 – Adaptando as Cidades para a Resiliência Climática – neste ano, se pretende levantar conciência a respeito das consequências de inundações, secas, deslizamentos e outras catástrofes climáticas no espaço urbano. Defende, desta forma, a necessidade de se reforçar a infraestrutura de base e a governança de forma a reduzir riscos climáticos em suas populações. Segundo o secretário geral da ONU, António Guterres, é necessário planejar com cautela as construções e estabelecimentos de novos setores urbanos, principalmente em locais de cidades já estabelecidas, pois a maior concentração de emissão de dióxido de carbono está situado nos centros urbanos, que se tornam “os centros urbanos são onde a batalha climática será amplamente vencida ou perdida”.
Cidade, urbanização e Relações Internacionais
A cidade, explica Sharp (2018), não é apenas um objeto material de fronteira física, mas algo criado e mantido através da repetição de práticas e processos de urbanização sócio-espaciais mantidos por sua população. Comércio, infraestrutura, arte, mobilidade, comida, religião, gênero, política, etnia: são todos aspectos integrantes de sua formação. Hoje, elas são responsáveis pela produção de 80% do PIB global e 75% das emissões globais, sem contar com o fato de que as grandes metrópoles possuem economias maiores de que países inteiros, tal como São Paulo é mais rica que Uruguai, Paraguai e Bolívia combinados (SWINEY, 2020). Neste aspecto, portanto, fica claro que a cidade está cada vez mais confundível com o poder, mas ainda há uma série de questões a serem levantadas sobre o papel da cidade no sistema internacional como um todo.
É verdade que a constituição de uma área urbana é, por sua natureza, repleta de questões de cunho político, social e econômico (SHARP, 2018). Desta forma, com o surgimento de megacidades e cidades globais, seu poder se reflete na capacidade de atração de investimento, comércio e pessoas, o que resulta na capacidade de exercer uma quantidade considerável de influência sobre os assuntos globais. Ainda que não possuam o poder militar ou a soberania estatal, seu soft power é o suficiente para que se tornem símbolos e sejam capazes expressar uma imagem própria (SWINEY, 2020) – basta que o leitor pare para considerar a influência que Nova York, Tóquio e Paris têm no imaginário popular global.
Enquanto a cidade esteve em grande parte ausente na construção do sistema internacional atual, negociado por Estados soberanos que as viam como subordinadas, há um argumento a fazer relativo a ver sua crescente autonomia e capacidade de tomada de decisão, seja através da paradiplomacia ou de sua inclusão à agenda da ONU. Para Swiney (2020), a cidade como instituição está em vias de se tornar um ator global em si mesma. Isto porque, enquanto governos nacionais se tornam incapazes de avançar políticas climáticas, migratórias, e de combate à desigualdade e extremismos, as cidades passam a se destacar ao atender, com mais proximidade, as necessidades de sua população.
Em Swiney (2020), a atuação internacional da cidade se reflete em diversos fenômenos recentes: a formação de redes e coalizões internacionais; seu alinhamento com organizações internacionais; sua conquista de cadeiras e poder de decisão na ONU; o crescimento de concertos realizados entre cidades; o uso avançado do Direito Internacional; e a adoção de resoluções e acordos entre si, para citar alguns. Por serem instituições menores, se tornam mais capazes de representar o que são interesses de pessoas de fato, além de receberem mais legitimidade com o fato de que, ao contrário de outros novos atores – dentre os quais a sociedade civil, empresas privadas e grupos de interesse – já são em si mesmas um sistema governamental.
Por outro lado, não é possível estudar a influência global da urbanização sem analisar outros aspectos, dentre os quais questões como conflitos, desigualdades e movimentos sociais. Como já mencionado, este fenômeno tem consequências radicalmente diferentes em países do Sul Global (GLAESER, 2014), e não é possível que seja estudado sem a análise de sua contínua desconstrução e reconstrução resultante de processos migratórios, guerras (SHARP, 2018), e novíssimas formas de violência inatas da própria cidade (MOURA, 2005). Ele é, portanto, constantemente transformada pelos poderes internos e externos que nela atuam, e muito sito depende da força institucional, concentração econômica e capacidade de infraestrutura (GLAESER, ibid.).
Basta lembrar dos casos de guerra que intensificam a urbanização a exemplo da cidade de Jerusalém em meio aos conflitos entre Israel e Palestina ou o aumento da concentração populacional da Síria em guerra – destruição é, afinal, seguida por construção ativa. Esta (re)construção, por sua parte, traz à tona os poderes capitalistas do setor imobiliário, que através de megaprojetos é capaz de atrair investimento ao mesmo tempo em que transforma profundamente a demografia interna do espaço e desloca populações. E a medida em que o povo é afetado, a cidade se torna palco de luta efetiva pela retomada tanto da cidade como do poder, a exemplo de Occupy Wall Street ou da Primavera Árabe que ocorre no Cairo, Bagdá ou Beirut (SHARP, 2018).
Muitas das vantagens derivadas da urbanização são localizadas: se, na China e na Coréia do Sul, esta resultou em um crescimento de renda familiar, em países menos estruturados como Paquistão e República Democrática Congo e suas megacidades Carachi e Quinxassa, ela continuou apesar da continuidade de pobreza e má governança (GLAESER, 2014). Quando o governo municipal, em conjunto com o poder estatal, não é capaz de manter o controle das periferias urbanas, estas se tornam espaços anárquicos repletos de forças alternativas, características das novíssimas formas de violência urbana (MOURA, 2005). Uma vez em que estes poderes alternativos (ao Estado e à cidade) formam também suas próprias redes globais – a exemplo das rotas transnacionais do tráfico de drogas – eles também passam a transformar, por si mesmos, as relações de poder globais.
Isto é fato: a presença da cidade nas Relações Internacionais é complexa e repleta de nuances. Swiney (2020), neste sentido, tem um ponto ao afirmar que ela pode ser pivotal para que a nomenclatura “internacional” passe a ser, de vez, inepta para se referir ao conjunto de relações entre atores globais. Ainda assim, no sistema atual, as relações entre cidade e atores já estabelecidos ainda são aquelas essenciais para definir qual será o desenho deste no futuro e em que capacidades os poderes urbanos estarão presentes.
Como instituição bem estabelecida internacionalmente, o reconhecimento da ONU sobre as questões que giram em torno da cidade é um destes passos. Neste sentido, explorar os temas do evento significa quais são os desafios que a sociedade internacional enxerga para o espaço urbano. Mas atenção: a ONU não deixa de ser limitada em seu paradigma institucional e político-estatal. Ainda que seja um primeiro passo essencial para a análise, vale recordar que que a cidade, assim como muitas das forças que nela atuam, vai além destas limitações e demanda métodos próprios para que se alcance resultados duradouros.
Conclusões
Em um mundo cada vez mais urbano, é inevitável que as cidades se tornem um foco de discussão global – mais do que isto, a atuação delas como corpos independentes, capazes de forjar suas próprias relações, se torna elementar para o bom funcionamento deste âmbito das relações entre poderes. À medida em que a cidade se vê como protagonista de debates envolvendo desenvolvimento, cooperação, inovação, comunidade e sustentabilidade, no entanto, também se torna objeto de discussões focadas em superpopulação, segurança, administração e consequências climáticas. O Dia Mundial das Cidades é fundamental para a determinação de tópicos e a divulgação destas questões entre líderes e população.
Com tudo isto em mente, também se torna claro que as cidades ainda são pouco estudadas no âmbito das Relações Internacionais, mesmo que haja uma promessa de que se tornem atores globais cada vez mais poderosos. Com o crescimento de novas preocupações urbanas, no entanto, é ainda possível argumentar que o sistema internacional convencional – tal como representado por Organizações tradicionais e correntes teóricas dominantes – tampouco será suficiente para que se desenvolvam discussões e soluções verdadeiramente duradouras. A urbanização, em si, é causa e consequência de uma mudança de paradigma. É preciso renová-los; afinal, é na cidade onde está o futuro da humanidade.
Referências Bibliográficas
GLAESER, E. L. A World of Cities: The Causes and Consequences of Urbanization in Poorer Countries. Journal of the European Economic Association, v. 12, n. 5, p. 1154–1199, 2014.
MOURA, T. Novíssimas guerras, novíssimas pazes: Desafios conceptuais e políticos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 71, p.77-96, 2005.
SWINEY, C. The Urbanization of International Law and International Relations: The Rising Soft Power of Cities in Global Governance. Michigan Journal of International Law, v. 41, n. 2, p. 227-326, 2020.
SHARP, D. The Urbanization of Power and the Struggle for the City. Middle East Report, v. 287, p. 2-5, 2018.