Em um mundo cada vez mais interdependente, descentralizado e heterogêneo; um dos maiores desafios – se não o maior desafio – para qualquer acadêmico de relações internacionais talvez seja conseguir desenvolver teses profundas que englobem, analisem e traduzam para a população em geral, uma compreensão mais assertiva acerca do mundo em que vivemos. Tais análises devem, além de um discurso afirmativo, englobar todos os pormenores do presente momento na sociedade internacional.
Ao longo do último século, quando as relações internacionais começam a surgir de fato como um campo de estudo próprio após o término da primeira guerra mundial. Diversos autores e pesquisadores dedicaram suas vidas e reputação a justamente desbravar este tão admirável mundo novo, que emergia diante de seus olhos.
Nesse sentido, o meio acadêmico fora demasiadamente marcado, por décadas, pelos chamados “grandes debates”, envolvendo choques de ideias e leituras de mundo diferentes, quando não metodologias cientificas diferentes, a fim de melhor apurar como o novo mundo, a política internacional e as relações entre Estados, de fato, funcionavam.
Tais debates trouxeram diversas teses e premissas que persistem e são estudas ainda hoje, como o realismo clássico e o idealismo, por exemplo. Todavia, um ponto curioso acerca dos grandes debates nas relações internacionais era que estes ocupavam-se por analisar o mundo, em suma, através de lentes e pautas demasiado técnicas, objetivas e positivistas.
Assim, a depender da premissa a qual se abraçava, ter-se-ia uma leitura mais ou menos pessimista acerca da natureza humana e suas ramificações. Porém, todas as teses concordavam com o mundo como sendo um ambiente anárquico, em que os Estados possuem interesses objetivos, como: território, proteção, riquezas, recursos naturais, energia, força militar, soberania e autonomia.
Contudo, até meados do fim da Guerra Fria, pouco se desenvolveu, em matéria de teses, perspectivas que fossem além da ideia de Estados, sistema internacional anárquico, estudos de guerra, cooperação econômica, soberania e defesa dos próprios interesses, e que englobassem no debate os aspectos mais ideológicos, étnicos, religiosos, linguísticos, culturais e sociais, tanto a nível dos Estados como a nível dos indivíduos.
Logo, será nesse sentido, perto do fim do último século que surgira uma nova tese, oriunda principalmente do campo das ciências sociais, mas que ao longo das últimas décadas vêm ganhando notório espaço como teoria de RI, o Construtivismo Social.
Desta forma, este artigo tem como sua proposta principal apresentar de forma clara e didática os principais pilares desta teoria, que vem se consolidando como “o caminho do meio” nas relações internacionais, e destacar em especial o trabalho de um dos principais teóricos da área, o pesquisador norte-americano, Alexander Wendt.
A Ascensão do Construtivismo Social no decurso Histórico das Relações Internacionais
A passagem do construtivismo social como uma tese originalmente voltada para os estudos sociológicos para uma das principais escolas de pensamento das relações internacionais é considerada um fenômeno recente, sendo que essa passagem se deu de forma progressiva, sem um corte profundo ao nível das bases teóricas e aplicação prática da teoria.
De modo a compreender melhor esta tese, cujo foco principal é a consciência humana e seus desdobramentos nos principais acontecimentos do mundo (Jackson & Sørensen, 2018, p. 290), importa realizar uma breve retrospectiva histórica sobre os eventos que precederam a ascensão do construtivismo social e a sua utilização na abordagem dos fenómenos e dos objetos de estudo das relações internacionais.
Ao longo da trajetória relativa ao estudo das relações internacionais, em particular durante o século XX, existiam duas teses principais para o entendimento de como se davam as relações entre os Estados no mundo pós-guerra. Na época, o cenário acadêmico estava basicamente voltado para as abstrações neorrealistas e neoliberais, de forma que o debate girava em torno da discussão e evolução destas mesmas retóricas, com cada um dos adeptos divergindo do outro em relação ao entendimento dito como “correto” para as questões globais do momento.
Embora os pensadores neoliberais defendessem as suas posições com argumentos bastante sólidos e convincentes, o cenário à época estava um pouco mais favorável aos neorrealistas como Kenneth Waltz (1924-2013). Afinal, era o período da chamada Guerra Fria, a maior disputa geopolítica de poder já vista até o momento, e o planeta se via à mercê das duas maiores potências vigentes, os Estados Unidos da América e a União Soviética.
No decorrer do conflito, ambos os países procuravam, por via da corrida armamentista, maximizar a respectiva capacidade militar e ao mesmo tempo capitalizar a sua influência política ao redor do globo, em particular dando apoio político, econômico e militar a outros Estados.
Para os pensadores neorrealistas como Kenneth Waltz, o que determinava a estabilidade da ordem política internacional, não era necessariamente os atores como pensavam seus antecessores, os realistas clássicos, mas sim a estrutura do sistema externo a qual todos estes estão condicionados. Logo, na visão neorrealista, os atores possuem pouca ou quase nenhuma importância na política internacional, pois o que determina as suas ações não é necessariamente a sua vontade ou o interesse particular de seus governantes, mas a distribuição de poder alusiva a estes dentro da estrutura do sistema (Jackson & Sørensen, 2018, p. 121).
No entanto, os pensadores neorrealistas à época tinham como seus adversários os adeptos do pensamento neoliberal, que diferentemente dos neorrealistas detinham uma visão mais positiva das relações humanas e das relações internacionais por consequência. De um modo sistematizado, os neoliberais surgem com uma visão um pouco mais pragmática que os seus antecessores, os idealistas, com quem protagonizaram junto dos realistas clássicos o primeiro grande debate das Relações Internacionais. Tal como os liberais clássicos, os neoliberais possuem uma interpretação mais otimista e racional acerca da natureza humana.
Estes acreditam, que para além de seus interesses privados, os homens são seres racionais e mais propensos à busca e realização de objetivos comuns, podendo assim se relacionar de forma mais colaborativa a fim de todos obterem melhores ganhos. Some-se a isso o aumento do livre mercado e a modernização do trabalho que ocorreram durante o século XX, e teríamos Estados mais propensos a trabalharem em conjunto a fim de alcançarem uma maior prosperidade e influência por via do comércio internacional e relações diplomáticas. Neste sentido, pode-se afirmar que os neoliberais acreditavam que, a longo prazo, essa interdependência político-econômica entre os Estados resultaria em um cenário mais próspero, descentralizado e colaborativo entre as nações, afinal “questões diferentes geram coalizões diferentes, ambas dentro de governos e entre governos, e envolvem diversos graus de conflito. A política transcende fronteiras” (Keohane & Nye, 1977, p. 25).
No entanto, como podemos falar em colaboração e prosperidade político-econômica quando o mundo se encontra bipartido entre dois grandes polos hegemônicos e a disputa vigente estava marcada pela retórica da divisão? Neste sentido, pode-se dizer que o cenário da Guerra Fria era, de fato, mais favorável aos pensadores neorrealistas como Waltz, que saiu em franca defesa da divisão bipolar de mundo, argumentando que esta seria mais segura para todos. De acordo com o teórico “com duas grandes potências apenas, espera-se que ambas mantenham o sistema” (Waltz, 1979, p. 204).
Os neorrealistas parecem ter razão em relação à divisão bipolar de mundo ocasionada pelo conflito; contudo estes só não contavam com um detalhe importante, o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética em 1991. Tais episódios mudariam, por completo, a perspectiva analítica das relações internacionais e por consequência deixariam estas muito mais líquidas e voláteis, abrindo espaço para outras interpretações.
Com a disputa geopolítica terminada e o projeto de poder do socialismo tendo fracassado, muito se especulou entre os meios acadêmicos sobre o que viria a seguir, o próprio Kenneth Waltz (2002) chegou a argumentar que com a queda da URSS o cenário internacional tornar-se-ia unipolar e centrado unicamente na presença dos Estados Unidos. Porém, este também argumentou que os demais Estados poderiam procurar se fortalecer a fim de contrabalancear o poder e a autonomia dos EUA. Será neste sentido que se assistirá à ascensão de outra vertente de pensamento nos debates das relações internacionais, vinda originalmente da teoria social, mas com a proposta de melhor qualificar o debate acadêmico à época.
O Construtivismo Social como Teoria das Relações Internacionais Contemporâneas
Como foi possível observar na secção anterior, a chegada do construtivismo social no cenário das relações internacionais decorre em um momento de profunda incerteza e instabilidade política. Afinal, chegou-se ao fim do grande conflito geopolítico entre os EUA e a União Soviética, e este primeiro tendo saído vitorioso vivia agora um momento de grande opulência e hegemonia ao redor do globo. Porém, não se sabia por quanto tempo e nem de que maneira esse novo sistema unipolar funcionaria. As dúvidas eram inúmeras e ambas as escolas de RI não tinham uma resposta contundente para o problema.
Logo, é possível afirmar que o término da Guerra Fria acabou por colocar em posição de xeque essas antigas escolas, outrora dominantes nas relações internacionais, abrindo assim espaço para a emergência de novos questionamentos relativos àquela situação. Debates acerca da importância do papel dos Estados, o balanço de poder e satisfação plenas dos próprios interesses começaram a perder força, e novos debates acerca do papel e importância dos indivíduos ganhavam nova notoriedade (Theys, 2017, p. 36).
Em linhas bastante gerais o construtivismo social traz consigo a seguinte premissa:
“vivemos em um mundo que construímos, no qual somos os principais protagonistas, e que é produto das nossas escolhas. Este mundo em permanente construção é construído pelo que os construtivistas chamam de agentes. Vale dizer: não se trata de um mundo que nos é imposto, que é predeterminado, e que não podemos modificar. Podemos mudá-lo, transformá-lo, ainda que dentro de certos limites. Em outras palavras, o mundo é socialmente construído” (Nogueira & Messari, 2005, p. 160).
Quando os primeiros trabalhos acerca do construtivismo social começaram a ser publicados no campo das RI – inicialmente com o trabalho de Nicholas Onuf, World of Our Making: Rules and Rule in Social Theory and International Relations publicado em 1989, e posteriormente com o artigo Anarchy Is What States Make Of It de Alexander Wendt em 1992 – tal perspectiva trouxe a ideia de uma possível revalidação do primeiro grande debate que ocorrera no começo do século XX, entre realistas e idealistas, pois de acordo com a perspectiva construtivista a questão a ser discutida não é de natureza metodológica, como fora no segundo grande debate entre tradicionalistas e behavioristas, mas sim de natureza ontológica. Ou seja, analisar a realidade existente, bem como a natureza do próprio indivíduo, com todas as suas complexidades absortas, em especial a percepção humana e o papel que esta tem na construção do mundo moderno.
O construtivismo embora tenha surgido de maneira bastante sútil em um momento de enorme fragilidade, ganhou severas críticas no meio acadêmico, principalmente por rejeitar alguns aspetos positivistas de teses clássicas como o neorrealismo. Para os construtivistas o mundo social e político que conhecemos não é constituído por uma realidade externa e independente aos homens, mas sim constituído por ideias e crenças metafísicas inerentes aos indivíduos e que acabam por influenciar na nossa leitura de mundo, assim como a forma como nos posicionamos em relação a este.
Logo, a perspectiva materialista e objetiva de mundo, próxima às abstrações de pensadores realistas e liberais durante décadas, desaparece na visão dos construtivistas que sugerem que a realidade não é separada do ser, mas sim indivisível aos homens e suas crenças. Segundo os professores Jackson & Sørensen (2018, p. 290-294):
“o sistema internacional não é algo que esteja ‘lá fora’, como o sistema solar. Não existe por si mesmo, mas apenas como consciência intersubjetiva ou percepção compartilhada entre pessoas; no sentido de um sistema constituído por ideias, não por forças materiais. É uma invenção ou criação humana de um tipo que não é físico nem material, mas puramente intelectual e ideacional. É um conjunto de ideias, um corpo de pensamento, um sistema de normas organizado por certas pessoas num momento e num lugar particulares. […] Tudo que se envolve no mundo social dos homens e mulheres é feito por eles. O fato de ser feito por eles os torna inteligíveis para eles. O mundo social é um mundo de consciência humana: de pensamentos e crenças, de ideias e conceitos, de linguagens e discursos, de signos, sinais e entendimentos entre seres humanos, especialmente no que se refere a agrupamentos, como Estados e nações”.
Contudo, é importante ter em vista de que os construtivistas não negam por completo a existência material e objetiva da natureza em sua abordagem, para construtivistas como Alexander Wendt existe sim uma natureza física e material no mundo que independe dos seres humanos, como: água, terra, florestas, petróleo e outros. Todavia, essa realidade material tem consigo um significado que é atribuído de forma coletiva ao seu respetivo significante em um determinado período do tempo cronológico e espaço social.
Desta forma, ainda que a humanidade jamais tivesse descoberto a utilidade do petróleo como um combustível fóssil, por exemplo, este continuaria a existir de forma totalmente independente e intocável no mundo natural. No entanto, a partir do instante em que se atribui nome, significado e função à coisa – neste caso o petróleo – você concede a este um sentido e uma função no mundo social e político. Logo, ainda que os construtivistas aceitem a existência de uma realidade objetiva que esteja “lá fora”, está só existe como conhecemos por conta das ideias e crenças construídas socialmente em cima delas. O mundo como conhecemos é produto das nossas ideias e construções.
Em suma, pode-se afirmar que o contexto histórico do final do século XX, junto ao desalinhamento teórico entre os acadêmicos racionalistas, ambos tentando formular explicações gerais para o entendimento daquela situação e desvendar o que viria a seguir, contribuiu para a ascensão do construtivismo social de forma quase natural nas Relações Internacionais.
O Construtivismo Social de Alexander Wendt
Análogo ao que já fora elucidado, o construtivismo social emergiu no campo das relações internacionais de forma consideravelmente sútil, entre as décadas de 1980 e 1990, com o livro World of Our Making: Rules and Rule in Social Theory and International Relations (1989) escrito por Nicholas Onuf (1941 -). Em sua obra, Onuf sugere que o mundo como conhecemos é na verdade uma grande construção social, logo as relações entre Estados não seriam nada além de fenômenos sociais obedecendo a uma agenda de regras e normas estabelecidas socialmente (Nogueira & Messari, 2005, p. 169).
Todavia, ficaria a cargo do teórico norte-americano Alexander Wendt dar o grande salto de abertura do construtivismo no âmbito internacional com o seu artigo Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics (1992) em que este comenta o então estado de paralisia que os pensadores neorrealistas e neoliberais pareciam padecer e nos apresenta uma nova perspectiva de análise da realidade, procurando construir uma ponte entre as preocupações positivistas e as pós-positivistas neste terceiro debate (Sarfati, 2005, p. 259).
O construtivismo possui como seu fator fundamental que o distingue das demais teorias uma visão mais ontológica e interacional da realidade internacional e não apenas materialista e racionalista como pensavam os neorrealistas e neoliberais. Neste sentindo, o nosso mundo seria construído por nossas ideias e crenças e estas, por sua vez, advindas de particularidades subjetivas e inerentes a nós como indivíduos, nos envolvendo e caracterizando como sociedade própria.
A fim de nos explicar essa questão, Wendt faz um paralelo entre a constituição de pessoas na sociedade e a soberania estatal:
“pelo menos duas distinções são importantes na definição de pessoas. A primeira é entre as duas formas de constituição das pessoas, a partir de dentro e de fora. A constituição interna refere-se ao papel das estruturas e processos dentro do corpo de uma pessoa. Por exemplo, todos os seres humanos adultos saudáveis têm, em virtude de sua estrutura biológica e cognitiva interna, a capacidade de ser pessoas. Cães e gatos, não. A constituição externa, em contraste, refere-se ao papel do reconhecimento social na formação das pessoas. A chave aqui é a convenção social: um indivíduo é considerado uma pessoa em sua sociedade? Nesse caso, ela receberá todos os direitos e privilégios desse status; se não, então não. (…) A distinção tradicional em RI entre soberania interna e externa é um bom exemplo desses dois processos em funcionamento. A soberania interna se refere à capacidade de um estado de exercer controle político de fato sobre seu território, a soberania externa ao seu reconhecimento como membro de jure da sociedade dos estados” (Wendt, 2004, p. 293-294).
Neste caso, o teórico sugere que assim como um indivíduo em sua sociedade precisa corresponder a um conjunto de processos internos que o categorizam como sendo ser humano e estes processos precisam ser reconhecidos pelos demais membros da sociedade, a relação entre Estados transcorre da mesma forma. Logo, para ser reconhecido como um Estado não basta apenas que este tenha a sua soberania e autonomia político-econômica reconhecida unicamente por seus nacionais, existe a necessidade inegociável de que os demais Estados também reconheçam essa autonomia e assim sendo concedam de maneira consensual o “status” de Estado para este ou aquele agente.
No entanto, para que tal evento ocorra é necessário mais do que a verificação da soberania, é preciso que haja também uma comunhão de competências intrínsecas e comuns a todos estes pares, como acontece entre os seres humanos, ao que Wendt vai chamar de “identidade coorporativa”. Nas palavras do teórico:
“a identidade corporativa do estado gera quatro interesses ou apetites básicos (1) segurança física, incluindo sua diferenciação de outros atores (2) segurança ontológica ou previsibilidade nas relações com o mundo, o que cria um desejo por identidades sociais estáveis (3) reconhecimento como um ator pelos outros, para além da sobrevivência por meio do desenvolvimento da força bruta (4), no sentido de atender à aspiração humana por uma vida melhor, da qual os Estados são repositórios no nível coletivo” (Wendt, 1994, p. 385).
Logo, pode-se perceber com esta afirmação que a identificação de uma nação como sendo agente do sistema internacional, não decorre unicamente de suas particularidades internas e de abrangência nacional. Estes pormenores absolutamente singulares, introversos de maneira indivisível, porém incessantemente evolutiva na nossa conjuntura social, como: família, idioma, cultura, hábitos, religião, sistema de governo, normas e economia, são resultantes da ação humana e igualmente importantes para a consumação do Estado.
Todavia, para além deste aspeto existe um conjunto de competências que o agente precisa possuir a nível externo e que corroboram para validá-lo como igual aos demais na esfera internacional. Questões como: a segurança nacional e a capacidade de reagir a um inimigo externo; o desejo de criar identidades sociais estáveis e confiáveis; reconhecimento por parte dos demais juntamente com o desejo coletivo de assegurar melhores condições de vida e bem-estar; todas essas nuances são demandadas, na visão de Wendt, para que o Estado possa se qualificar como um agente dentro da estrutura.
Dito isso, a maneira como a posteriori os agentes irão se relacionar e procurar a satisfação de seus interesses uns com os outros é de ordem totalmente subjetiva e dependerá da forma como estes se definem em relação aos demais agentes no quadro sistémico existente. Nesse sentido, torna-se pertinente salientar que embora socialmente construída a identidade social de um agente pode ser volúvel e múltipla ao mesmo tempo a depender de quem seja o outro e de quais interesses estão presentes na equação (Sarfati, 2005, p. 261).
Destarte, tendo-se compreendida a forma como as identidades sociais se constituem dentro do âmbito doméstico e quais as competências que são necessárias para que esta mesma identidade social transponha o nível nacional para a esfera internacional, torna-se necessário agora entender melhor como Alexander Wendt explica o conceito de anarquia na perspectiva construtivista e a forma como os Estados se relacionam dentro da cultura anárquica.
Quando estamos a discorrer sobre anarquia existe um ponto em comum que parece ser transversal tanto a construtivistas quanto a neorrealistas e neoliberais, o aspeto da segurança. Afinal, independentemente da abordagem teórica que você escolha para analisar a realidade internacional, a segurança sempre se mostra como sendo um fator fundamental em todos os debates teóricos de Relações Internacionais.
No entanto, embora possa ser visto como um elo em comum o mesmo não se aplica à forma como estes teóricos imaginam os Estados buscando sua segurança no cenário internacional. Neorrealistas, como Kenneth Waltz, provavelmente alegariam que a busca por segurança ocorreria de forma natural dentro dos limites da estrutura de acordo com a posição política e económica dos Estados dentro da mesma. Os neoliberais por sua vez talvez defendessem a tese que com um sistema internacional mais cooperativo entre os Estados e com uma maior interdependência comercial, os riscos à segurança tornar-se-iam “controláveis”.
Dito isso, Wendt nos sugere que a forma como os agentes se posicionam no sistema anárquico dependerá da forma como estes são igualmente construídos. Uma vez que agente e estrutura são construídos conjuntamente a partir da consciência humana e de um ato coletivo de concordância social, não haveria espaço neste sentido para a existência de uma estrutura prévia com poderes causais a parte do todo esse processo (Wendt, 1992, p. 394). Logo, o que se tem é na verdade um grande conjunto de identidades e vontades resultantes dos fatos sociais relativos a cada Estado, e da forma como estes interagem uns com os outros. Nas palavras do teórico construtivista:
“os estados agem de maneira diferente com os inimigos e com os amigos, porque os inimigos são ameaçadores e os amigos não. A anarquia e a distribuição de poder são insuficientes para nos dizer qual é qual. O poder militar dos EUA tem um significado diferente para o Canadá e para Cuba, apesar de suas posições “estruturais” semelhantes, assim como os mísseis britânicos têm um significado diferente para os Estados Unidos do que os mísseis soviéticos. A distribuição de poder pode sempre afetar os cálculos dos estados, mas como o faz depende da compreensão intersubjetiva e das expectativas, da “distribuição do conhecimento”, que constituem suas concepções de si e do outro. (…) se os Estados Unidos e a União Soviética decidirem que não são mais inimigos, “a guerra fria acabou”. São os significados coletivos que constituem as estruturas que organizam nossas ações. Atores adquirem identidades – relativamente estáveis, compreensões específicas de papéis e expectativas sobre si mesmos – participando de tais significados coletivos” (Wendt, 1992, p. 397).
Neste sentido, percebe-se que na perspectiva construtivista de Wendt, o ponto crucial para o entendimento acerca da postura dos agentes no sistema anárquico não se encontra nas capacidades objetivas de cada Estado de se autodefender e nem no balanço de poder vigente na estrutura internacional. Estes sim são elementos pertinentes e que corroboram para o andamento da estrutura, Wendt em nenhum momento ignora este fato, contudo este alega que apenas isso não é o bastante para uma compreensão mais aprofundada, sendo necessária a compreensão subjetiva de como decorrem as relações entre os agentes.
“uma arma nuclear não existe na natureza, embora objetos na natureza, como paus, possam ser usados como armas. É o projeto e a intenção humanos que moldam o objeto material em um com um significado específico e uso dentro de um contexto, onde identidades e interesses específicos estão em jogo” (Fierke, 2010, p. 192).
Tendo em vista esse argumento inicial de Wendt sobre o posicionamento dos Estados dentro do sistema anárquico e a forma como estes se relacionam, eis que o teórico também nos apresentará a visão de que não existe um único sistema anárquico geral para todos os Estados, mas sim três modelos gerais de anarquia, são estes o modelo: hobbesiano, lockiano e kantiano. Cada um deles com características gerais próprias e podendo se aplicar de forma diferente a cada Estado, a depender da sua identidade e da interação subjetiva que este terá com os demais, podendo inclusive existir múltiplas anarquias ao mesmo tempo para diferentes agentes e com diferentes níveis de violência. Nas palavras de Wendt (1999, p. 257-258),
“embora na maioria das culturas os papéis sejam funcionalmente diferenciados, a anarquia torna difícil sustentar a assimetria de papéis até que o problema da violência seja mitigado e, portanto, proponho que no cerne de cada tipo de anarquia está apenas uma posição de sujeito: nas culturas hobbesianas, é ‘inimigo’, em lockeano ‘rival ‘ e ‘amigo’ kantiano, cada um envolve uma postura ou orientação distinta do Eu em relação ao Outro com relação ao uso da violência, que pode ser realizada de várias maneiras no nível micro. A postura dos inimigos é a de adversários ameaçadores que não observam limites em sua violência mútua; a dos rivais é a dos competidores que usarão a violência para defender seus interesses, mas evitarão matar uns aos outros; e o de amigos é um dos aliados que não usam a violência para resolver suas disputas e trabalham em equipe contra ameaças à segurança”.
Quando pensamos na cultura hobbesiana como uma forma de anarquia entre os agentes, logo de início nos surge a ideia proposta pelo então filósofo britânico em sua obra, em que haveria um “status” de conflito permanente em que todos seriam adversários de todos na sociedade. Ao transportar tal ideia para uma perspectiva macro, podemos presumir que no estado de anarquia hobbesiana teríamos os Estados postos como inimigos uns dos outros; em que um não reconhece o direito do outro de existir ou vê este como sendo uma ameaça à sua própria existência dentro do sistema. Ao nos debruçarmos sobre tal perspectiva do sistema anárquico, pode-se afirmar que o conflito violento seria praticamente inevitável nesta situação.
Não obstante na perspectiva de cultura lockiana de anarquia, Wendt nos apresenta agentes que não se consideram inimigos por natureza, mas sim rivais, ou seja, existe um reconhecimento mútuo que estes são adversários, porém coexiste juntamente a isso a ideia de autocontenção por parte de cada um. Logo, o teórico construtivista nos sugere a ideia de que Estados divergentes não se odeiam necessariamente, apenas procuram satisfazer seus objetivos e interesses de forma a querer garantir a sua sobrevivência dentro da estrutura internacional.
Por fim, temos a cultura kantiana de anarquia, em que os Estados veem uns aos outros como aliados e buscam colaborar para viver em união pacífica e ordenada. No seguimento desta ideia, podemos afirmar que na Europa após o término da Segunda Guerra Mundial, vigorou uma espécie de cultura kantiana de anarquia, afinal os Estados encontravam-se todos prejudicados, alguns para mais ou para menos, por causa do recente conflito e precisavam se unir a fim de melhor capitalizar interesses e conduzir reformas político-econômicas. Em outras palavras, juntar forças e recursos a fim de fazer aquilo que era melhor para si e para o grupo.
Outro aspeto importante da teoria de Wendt é que para além das três culturas de anarquia que ele nos apresenta, este também sugere a existência de diferentes graus de internalização entre cada uma delas. Logo, um agente dentro da estrutura pode estar mais propenso a uma cultura lockiana com um Estado vizinho, cujas características internas como: terreno, cultura, idioma, economia e política se assemelhem com as dele próprio. Ao mesmo tempo, este também pode se indispor e optar por uma conduta mais ou menos hobbesiana com outra nação que esteja a ameaçar sua segurança e autonomia dentro da estrutura.
Esses diferentes graus de internalização das culturas de anarquia sugeridas por Alexander Wendt no âmbito internacional, são voláteis e passivas de sofrerem alterações a depender do Estado, identidade, interesses nacionais ou das circunstâncias político-econômicas presentes no dado momento. O teatro das relações internacionais, segundo a perspectiva construtivista de Wendt, é complexo, mutável e não pode apenas ser reduzido a uma ordem geral de mundo não levando em consideração as minudências de cada agente e suas relações dentro da estrutura. Afinal “a anarquia é o que os Estados fazem dela” (Wendt, 1992, p. 394).
Considerações Finais
A proposta desse artigo fora apresentar no transcorrer da escrita alguns dos aspectos principais que constituem as bases elementares do que vem a ser o Construtivismo Social, e como este nas últimas décadas vem se destacando como uma das teses mais promissoras das relações internacionais contemporâneas. Particularmente, como analista e acadêmico, gosto muito de pensar o construtivismo social como uma destas teses excepcionais que chegam de maneira repentina e impactante no debate, a fim de iluminar os pontos e fendas até então não inexplorados pelas teses vigentes. Obviamente, que não estou aqui a querer deslegitimar as teorias e trabalhos mais clássicos, como o realismo e o idealismo. Estes tiveram – e continuam a ter – seu grau de importância quando aplicados no debate.
Todavia, é igualmente verdade que em razão de suas conjecturas originais, tais abstrações soam demasiado engessadas para os tempos atuais. Especialmente em um mundo, em que novas discussões sociais importantes, como: direitos humanos, identidade social, linguagem, cultura, racismo, igualdade de gênero e demais outras, surgem a todo momento. Dar-lhes-ei um exemplo, pensemos no caso recente do Afeganistão e o retorno do grupo extremista Talibã ao poder. Por mais fracassada que possa ter sido a tentativa norte-americana de desenvolver um protótipo de governo com características liberais e democráticas. Este, enquanto presente, instaurou mudanças significativas na sociedade afegã, por exemplo, uma maior presença das mulheres afegãs no mercado de trabalho, na política, além de maior acesso destas a educação. Mudanças estas que, embora tímidas, aconteceram e serviram como base, ao longo dos últimos 20 anos, para construir na sociedade uma mudança de paradigma acerca do papel da mulher na sociedade afegã e até o papel destas no mundo árabe.
Entretanto, o Talibã não compactua da mesma visão promovida pelo ocidente em relação ao papel das mulheres, em razão de sua interpretação particular sobre a Sharia. Logo, podemos assistir a um possível choque de ideologias e narrativas com esse evento recente no Afeganistão sobre o papel da mulher afegã na sociedade. O que pode ser muito bem analisado a luz do Construtivismo Social, ainda que com ao apoio de outras teses como o Feminismo e o Pós-Colonialismo.
Outro possível exemplo é a questão envolvendo Hong Kong. O país, embora tenha sido devolvido ao território chinês de maneira formal e legitima, passou recentemente por momentos de tensão e protestos. Em 2019, o mundo assistiu aos protestos de Hong Kong em virtude da Lei de Segurança Nacional proposta pela China.
No entanto, para além das discordâncias jurídicas e da massiva contestação popular sobre esta lei, havia junto as manifestações um elemento cultural e identitário importante a ser analisado. Especialmente entre os mais jovens, nutria-se um discurso e um sentimento coletivo de identidade social muito forte destes para com seu país, com estes se apresentando em meio aos protestos não como chineses, mas como honcongueses. Ou seja, o povo de Hong Kong.
Estes e demais outros exemplos podem ser facilmente encontrados na sociedade internacional contemporânea. Nesse sentido, reitero aqui minha tese da importância de se reconhecer o construtivismo social hoje não como uma “teoria auxiliar”, como por vezes esta é rotulada, mas como uma teoria principal e que chegou para ficar conosco por muitos anos no debate.
Perceber o construtivismo social como uma teoria que surgiu a fim de compreender os desdobramentos e a complexidade do mundo pós-guerra fria, os entraves recentes entre diferentes civilizações ao redor do globo, as construções de interesse, a volatilidade do sistema anárquico, e a expressão da identidade social e corporativa dos Estados, vai além de somente desafiar as teses clássicas.
Faz-se uma tentativa séria de releitura do próprio status quo da academia vis-à-vis o mundo que a nossa frente se conjectura. Um mundo que não pode mais ser observado de maneira binária, ou até mesmo como um objeto estático e homogêneo em meio ao vazio.
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